Da “masculinidade tóxica” ao “homem desconstruído”: humor de gênero e consumo de ativismos na série Homens?

 

From “toxic masculinity” to the “deconstructed man”: gender humor and consumption of activisms in the series Homens?

 

De la “masculinidad tóxica” al “hombre deconstruido”: humor de género y consumo de activismos en la serie Homens?

 

e-ISSN: 1605 -4806

VOL 24 N° 111 Mayo - Agosto 2021 Varia pp. 285-305

Recibido 12-05-2021 Aprobado 28-05-2021

https://doi.org/10.26807/rp.v25i111.1759

Eliza Bachega Casadei

Brasil

Escola Superior de Propaganda e Marketing: Programa de Pós-Graduación en Comunicación y Prácticas de Consumo

eliza.casadei@espm.br

Nara Lya Cabral Scabin

Brasil

Universidad Anhembi Morumbi: Programa de Pós-Graduación en Comunicación

naralyacabral@yahoo.com.br

 

 

Resumo

O objetivo do presente artigo é compreender como se articulam e negociam sentidos de masculinidade na série televisiva brasileira Homens?, bem como analisar de que maneiras a mobilização de tais representações gera efeitos de humor. Criada por Fábio Porchat, a série assume a masculinidade como objeto de seu próprio discurso, apresentando a trajetória de personagens que se locomovem entre “velhas” e “novas” identidades. Com base em aportes da Análise do Discurso, discutimos como a produção tensiona parcialmente convenções da masculinidade hegemônica e recorre a diferentes estratégias discursivas a fim de produzir comicidade. Dessa forma, a série elege a “masculinidade tóxica” como objeto de riso, evidenciando redefinições no campo do humor a partir da incorporação de uma perspectiva de consumo ativista.

Palavras-chave: masculinidades, humor, comunicação audiovisual, consumo de ativismos.

Abstract

This article aims to understand how masculinity is articulated and negotiated in the Brazilian television series Homens?, as well as in which ways the mobilization of such representations generates humor effects. Created by Fábio Porchat for Comedy Central, the series mobilizes a masculine perspective that assumes masculinity as the object of his own discourse, presenting the trajectory of characters that move between “old” and “new” identities. Based on Discourse Analysis concepts, we discuss how the series partially tensions conventions of hegemonic masculinity and uses different discursive strategies in order to produce comicality. Thus, the show chooses “toxic masculinity” as an object of laughter, showing redefinitions in the field of humor from the incorporation of an activist consumption perspective.

Keywords: masculinities, humor, audiovisual communication, consuption of activisms.

Resumen

El propósito de este artículo es comprender cómo sentidos de masculinidad se articulan y negocian en la serie brasileña de televisión Homens?, así como de qué manera la movilización de tales representaciones genera efectos de humor. Creada por Fábio Porchat, la serie asume la masculinidad como objeto de su propio discurso, presentando la trayectoria de personajes que se mueven entre identidades “antiguas” y “nuevas”. Con base en conceptos del Análisis del Discurso, discutimos cómo la producción tensiona parcialmente las convenciones de la masculinidad hegemónica y utiliza diferentes estrategias discursivas para producir humor. De esta manera, la serie elige la “masculinidad tóxica” como objeto de risa, mostrando redefiniciones en el campo del humor desde la incorporación de una perspectiva de consumo activista.

Palabras clave: masculinidades, humor, comunicación audiovisual, consumo de activismos.

 

Introdução

O controle sobre as formas de contar piadas é, para Hanke (1998), um dos modos de reprodução da masculinidade hegemônica. E, se uma maneira a partir da qual esse poder masculino é realizado está na representação humorística que tradicionalmente tem sido feita de mulheres e outros grupos marginalizados, outra forma de materialização compreende a construção de um espetáculo sobre si mesmo, ou seja, o controle das formas pelas quais as estruturas patriarcais são satirizadas, transformando o próprio discurso masculino em alvo para o humor.

Nesse sentido, desde a década de 1960, o público tem sido apresentado a sitcons que propõem narrativizar a temática do machismo sob um ponto de vista masculino, em que os próprios homens reconhecem a precariedade da masculinidade hegemônica. Em tais representações humorísticas, a narrativa transita entre o jogo da identificação e da desidentificação, uma vez que o público pode rir das situações desconfortáveis em relação às masculinidades porque elas acontecem no contexto da comédia.

Homens? (2019), série cômica televisiva escrita e protagonizada por Fábio Porchat para o Comedy Central, insere-se na esteira dessas produções, mobilizando uma perspectiva masculina que assume a masculinidade como objeto de seu próprio discurso. Como é característico do gênero, o modo paródico engendra uma narrativa que “indica uma redistribuição dos investimentos afetivos de alguns homens em representações passadas em favor de algum investimento em representações mais atuais”1 (Hanke, 1998, p. 88). Assim, ao mesmo tempo em que as histórias contadas reconhecem a vigência de estruturas masculinas hegemônicas, elas convidam a uma reflexão sobre a reconstituição dessas normas ao torná-las alvo de zombaria.

A partir desses pressupostos, o objetivo do presente artigo é estudar as estratégias discursivas mobilizadas pela série Homens? a fim de compreendermos as formas de construção do humor nessa produção. Tal como apontado por Hanke (1998, p. 90), séries como esta “sugerem que não há nenhum significado primário ou estável de ‘masculinidade’” como também “não existe uma relação funcional única entre gênero e humor”2, em uma forma de comicidade que é produzida por meio de uma variedade de representações masculinas e estratégias discursivas.

Assim, embora a satirização de construções discursivas da masculinidade hegemônica no humor televisivo esteja longe de constituir um fenômeno novo, acreditamos que o caso da série Homens? demanda um olhar mais atento. Isso porque, em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que a produção pode ser considerada uma comédia de mock-macho (Hanke, 1998), ela parece trazer alguns elementos destoantes em relação a características recorrentes nesse tipo de programa televisivo – hipótese que esperamos discutir ao longo do trabalho.

Ao mesmo tempo, o interesse representado pela série como objeto de estudo justifica-se diante da singularidade do contexto político-cultural em que se dá sua emergência. Com duas temporadas exibidas originalmente em 2019 e 2020, a produção vem a público em um momento da história recente brasileira particulamente desafiador para o debate sobre gênero, marcado pelos desdobramentos da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, e pela intensificação da chamada “virada conservadora”, fenômeno em escala global que, conforme apontam Norris e Inglehart (2019), vincula-se à tentativa de retomada de hegemonia por parte de grupos dominantes frente ao avanço das lutas identitárias e dos movimentos em defesa dos direitos das minorias.

Finalmente, convém observar que a série Homens? destaca-se por sua recepção crítica, tendo sido apontada como inovadora em termos não apenas das estratégias narrativas adotadas, mas também do debate proposto sobre masculinidade. Tal leitura, como é óbvio, deve ser considerada em face do fato de a série tensionar uma percepção corrente sobre o campo do humor televisivo como marcado por uma primazia histórica de expressões sexistas e estereótipos de gênero de caráter não raro degradante para mulheres e a comunidade LGBTQIA+.

Exemplo de recepção entusiasmada da série pode ser encontrado na coluna de Cristina Padigilone para a Folha de S. Paulo. Em 2 de junho de 2020, data de exibição do último episódio da segunda temporada de Homens? pelo Comedy Central, a crítica escreveu: “[...] o programa vale muito a pena para pessoas igualmente dispostas a questionar valores humanos de toda espécie, em busca de um mundo mais prazeroso para todos, do afeto ao sexo, da profissão ao ócio, da família à esfera social” (Padiglione, 2020, online). Como veremos, a circulação e a repercussão midiáticas da produção evidenciam uma tendência à valorização de um “consumo de ativismo” (Domingues & Miranda, 2018) que, espraiando-se em múltiplas direções na contemporaneidade, alcança também o campo do humor.

Diante dessas considerações, propomos compreender como se articulam e negociam, na série Homens?, sentidos de masculinidade, bem como de que maneiras a mobilização de tais representações vincula-se a sentidos de humor na produção. Nesse percurso, interessa-nos refletir sobre as potencialidades cômico-críticas das representações propostas na série, de modo a ser possível discutir em que medida este produto audiovisual reitera e/ou tensiona elementos da masculinidade hegemônica. Ao mesmo tempo, esperamos compreender o que tais estratégias revelam em termos do consumo cultural de humor de gênero na contemporaneidade.

1. A série Homens? no contexto das comédias masculinas

A série de comédia Homens?, atualmente na segunda temporada (cada uma com oito episódios), tem como temática central os relacionamentos sexuais e amorosos do protagonista Alexandre (interpretado por Fábio Porchat) e seus quatro amigos mais próximos – Pedro (Gabriel Louchard), Pedrinho (Raphael Logam) e Gustavo (Gabriel Godoy). Do ponto de vista do conteúdo, a série aborda como o machismo estrutural interfere no dia a dia e nos relacionamentos dos sujeitos, propondo reflexões sobre o tema e enfatizando mudanças nas atitudes dos personagens.

Marca dos elementos de complexidade narrativa presentes na série (Lemos, 2020), outro personagem central é Pau (interpretado por Rafael Portugal), versão antropomorfizada do pênis de Alexandre, que funciona como espécie de repositório de uma natureza masculina “essencial” contra a qual o protagonista deve lutar. Esse papel e sua construção visual remetem à personificação do órgão genital do protagonista de Seinfeld, sitcom dos anos 1990 que também se caracteriza por uma narrativa complexa; nessa produção, o pênis é interpretado pelo próprio Jerry Seinfeld, que dá vida à versão ficcional da si mesmo, mas, diferentemente de Homens?, tem participação pontual, aparecendo no ٩º episódio da ٣ª temporada (Figura 1).

Figura 1. Personificação do pênis do protagonista de Seinfeld (à esq.) e personagem Pau, da série Homens?, em cena do episódio 1 da primeira temporada (à dir.)

Fonte: capturas de tela realizadas pelas autoras.

Do ponto de vista estético, Lemos (2020, p. 2) aponta que a série “apresenta traços do realismo grotesco, em que a imagem grotesca se caracteriza por fenômenos que estão em processo de transformação, mas que ainda não se completaram – tanto na obra quanto na própria realidade brasileira”. As transformações pessoais dos personagens, portanto, “transcorrem paralelas e inacabadas”, de forma que temas como sexualidade feminina e masculina, aborto, relações de trabalho entre gênero, swing, assédio, entre outros, são “discutidos, problematizados e ocasionalmente se integram à diegese, sendo dramatizados e aprofundados” (Lemos, 2020, p. 4).

O realismo grotesco apela ao “sistema de imagens da cultura cômica popular” que “transita pela via da predominância de demonstrações da vida corporal e da vida material, exibidas de maneira marcada e exagerada” (Lemos, 2020, p. 8). Na série, isso se materializa em uma tentativa de narrativizar a ideia de que a

[...] desconstrução do pensamento machista – imposto aos homens desde a infância e persistentemente reforçado pela família, amigos e sociedade – é gradual e passa por diferentes fases como: negação, observação, compreensão, tentativa de mudança e, finalmente, a busca de aplicação do aprendizado (Lemos, 2020, p. 11).

Em entrevistas sobre a série, Fábio Porchat constantemente enfatiza que um dos principais objetivos da produção é suscitar reflexões sobre a “masculinidade tóxica” e o machismo. De acordo ele, “é uma série que fala sobre machismo e homens se percebendo machistas. O único lugar de fala que eu tenho é falar do homem hétero. Então, resolvi falar do cara que brocha” (Fábio Porchat cit. por Extra, 2019, online). Em outra entrevista, diz que “a série fala sobre como o machismo é ruim também para os homens, além de atacar as mulheres, claro. A gente vai rir disso e esses personagens que tentam aprender isso ao longo da série apanham muito para entender que isso está acontecendo” (Fábio Porchat cit. por Brandão, 2019, online).

Dessa forma, Homens? se enquadra em um gênero de comédia presente no cenário televisivo desde ao menos a década de 1960 (Hanke, 1998), no qual a masculinidade narrativizada sob a ótica masculina se converte em alvo do discurso humorístico, em produções que propõem outras formas de representação dos homens para além do machão tradicional. Esse tipo de produção se diferencia das demais na medida em que, como aponta Gymnich (2010), em séries de humor, especialmente, a estereotipização de gêneros foi, durante muito tempo, bastante marcada, com o comportamento macho, as personagens femininas hiper sensíveis, os personagens masculinos afeminados e profissionais mandonas sendo constantemente retratados em sitcons (Gymnich, 2010). Uma vez que esse tipo de produção audiovisual repousa suas estratégias comunicativas em comportamentos recorrentes para produzir comicidade, o desenvolvimento de personagens em direção a um tratamento menos estereotipado de gênero tende a ser uma exceção. Não obstante, a aposta em representações alternativas tem encontrado espaço crescente na programação televisiva.

A partir de um estudo que analisou séries audiovisuais de western e dramas prisionais sob a perspectiva da representação das relações familiares, Cuklanz e Erol (2021) mostram que se, tradicionalmente, muitos desses programas representavam o masculino a partir das aventuras dos homens no mundo, o cuidado tem sido um elemento acrescido a produções mais recentes. Assim, séries como Prison Break, The Mandalorian e The Witcher oferecem uma outra performance de masculinidade ao colocar as relações familiares em primeiro plano, com a valorização do cuidar e do nutrir, ao mesmo tempo em que são exibidos traços de masculinidade hegemônica, como uso de violência, estoicismo e orientação para a ação. Dessa forma, mesmo em seriados que encenam aventuras hipermasculinas, “há o retrato dos sentimentos dos personagens e relacionamentos em histórias que investigam as provações e complexidades da masculinidade contemporânea de uma maneira anteriormente incomum”3 (Amanda D. Lotz cit. por Cuklanz & Erol, 2021, p. 546).

Da mesma forma, Thompson (2015) analisa como, em séries como How I Met Your Mother, há a incorporação, no retrato dos personagens masculinos, de críticas pós-feministas ao expor a natureza construída e conflituosa da masculinidade, em uma combinação de características de formações dominantes, residuais e emergentes da identidade masculina. Já para Neville (2009), comédias como Mr. Bean oferecem mais do que entretenimento leve para o público, revelando também um potencial para testar os limites e as convenções da masculinidade hegemônica a partir da desconstrução dos signos, símbolos e imagens da masculinidade. Albrecht (2015), por sua vez, considera que as performances de masculinidade atualmente oferecidas por produções seriadas televisivas excedem a distinção binária entre o “novo homem” e o “homem tradicional” ao engendrar versões em que a masculinidade não está nem em crise nem em êxtase; ela seria, antes, um efeito da complicada interação entre crise e êxtase.

No caso da série Homens?, verificam-se estratégias discursivas que se empenham em tensionar – ao menos parcialmente – alguns dos pilares fundamentais da masculinidade hegemônica, entendida como definidora da experiência masculina a partir dos eixos do poder (que abarca a dimensão da força física), status (incluída aí a posição de provedor financeiro da família) e heterossexualidade (Neville, 2009). Em relação ao protagonista, Alexandre, seu estatuto de masculinidade é abalado já no episódio 1 da primeira temporada, quando, em uma relação sexual, o personagem não consegue manter a ereção. Durante uma longa busca pela superação da impotência sexual, ele se revê como homem e assume uma postura crítica em relação a condutas machistas que, até então, pareciam-lhe naturais. Assim, as principais transformações que compõem o arco narrativo de Alexandre ao longo das duas primeiras temporadas da série, marcado por um empenho consciente em se afastar de comportamentos masculinos opressivos, dizem respeito ao questionamento de componentes da masculinidade hegemônica, especialmente no que diz respeito à inclinação para a violência (tanto física quanto simbólica).

Nesse sentido, o personagem assume postura autorreflexiva e empática, mais voltada ao autoconhecimento e à afetividade, caracterização que contribui para distanciá-lo de representações que valorizam comportamentos analíticos e a inclinação para a ação como componentes da masculinidade hegemônica. É sintomático, nesse sentido, que o fato que leva Alexandre à impotência e, por conseguinte, à tomada de consciência seja uma atitude violenta dirigida contra Dani (Cintia Rosa), mulher por quem é apaixonado (um flashback aos 9’10’’ do episódio 1 da primeira temporada mostra que o protagonista, bastante embriagado, assediou a então amiga mostrando-lhe o pênis durante uma festa, no banheiro de sua casa).

Não obstante, convém notar que a heterossexualidade de Alexandre (incluindo uma quase permanente disponibilidade ao sexo) permanece intocada. Não deixa de ser curioso observar também que praticamente todas as mulheres que convivem com Alexandre tentam seduzi-lo ou mostram-se interessadas nele, ecoando o estereótipo da “mulher insaciável”, comum em narrativas estruturantes da masculinidade hegemônica, como a pornografia (Milner, 2020, p. 330). Além desses pontos, o personagem pode ser identificado com a figura do provedor, em um ideal de masculinidade bem-sucedida, dado o status decorrente de sua condição socioeconômica e posição profissional. Desse modo, vale destacar ainda que, mesmo quando Alexandre abandona seu cargo em uma agência de publicidade, no final da primeira temporada, essa escolha não ameaça seu estilo de vida material e/ou status profissional, até porque ele continua sendo requisitado para “jobs” temporários mediante altas remunerações.

Da mesma forma, os demais personagens principais desfrutam de condições econômicas confortáveis e, com exceção de Gustavo, possuem carreiras de sucesso. Esse dado é interessante na medida em que sinaliza um evidente corte de classe nas representações da masculinidade em Homens?, todas elas ligadas a vivências de classe média e classe média-alta, tendência recorrente na tradição de séries televisivas de comédia que visibilizam masculinidades para além da masculinidade hegemônica e/ou satirizam sentidos de masculinidade a partir de um discurso masculino (Hanke, 1998; Neville, 2009). É preciso reconhecer, entretanto, que a produção do Comedy Central destoa dessa tradição ao ampliar o espaço conferido a personagens negros e negras.

Ainda em relação aos componentes da masculinidade hegemônica, é interessante notar que a “ameaça” a uma heterossexualidade convicta ronda os personagens principais em diferentes momentos da série, como quando, também na segunda temporada, Gustavo demonstra sentir medo de ser homossexual após sentir prazer quando sua namorada Natasha (interpretada por Giselle Batista) introduziu o dedo em seu ânus durante o sexo. Ao longo da produção, tais experiências contribuem para reafirmar a heterossexualidade dos protagonistas mais do que para esgarçar as fronteiras entre hétero e homossexualidade – ainda que, simultaneamente, atuem no sentido de uma problematização de posturas homofóbicas e de um alargamento das representações cabíveis em uma identidade heterossexual.

Tal movimento narrativo-discursivo não se dá ao acaso: como o roteirista e ator principal Fábio Porchat reconheceu em entrevista, a série teria sido concebida a partir do seu próprio “lugar de fala”, isto é, a perspectiva do homem heterossexual (Fábio Porchat cit. por Extra, 2019). Não à toa, nas duas primeiras temporadas, o único personagem masculino que foge à heterossexualidade convicta dos quatro protagonistas é Gael (Yuri Marçal), que passa a alugar um quarto na casa de Alexandre. Rejeitando rótulos como “homossexual” e “bissexual”, o jovem afirma, em diálogo com Alexandre aos 12’54’’ do episódio 2 da segunda temporada, a fluidez de sua sexualidade: “Cara, essa coisa de bi, de gay, é meio ultrapassada. Não tem mais isso hoje em dia, não. Isso é da tua geração. Eu gosto de gente”. Assim, o contraponto representado por Gael em relação aos quatro protagonistas é reforçado também por seu perfil etário/geracional (ele é cerca de dez anos mais jovem que Alexandre), além de condição socioeconômica menos privilegiada.

Em suma, se, por um lado, é possível identificar, na série Homens?, um tensionamento não mais do que parcial em relação a representações da masculinidade hegemônica, por outro lado, a produção se destaca ao assumir um contexto de crise da masculinidade não apenas como dado contextual ou pano de fundo, mas como elemento diegético fundamental. Dessa forma, o principal eixo articulador das transformações experienciadas pelos personagens diz respeito à desconstrução, na esfera individual, de uma “masculinidade tóxica”, termo de ampla circulação midiática, frequentemente relacionado a uma masculinidade “doente” ou “nociva” não apenas às mulheres, como também aos próprios homens (Casadei & Kudeken, 2020).

Não deixa de ser interessante notar que essa construção discursivo-narrativa parece sintonizada em relação a alguns dos contornos assumidos pela circulação midiática de discursos feministas na contemporaneidade. De fato, a própria série faz referência a esses discursos quando mostra, por exemplo, a repercussão de peças publicitárias escritas por Alexandre, apontadas como “machistas” em redes sociais digitais. Mais do que isso, a desconstrução da “masculinidade tóxica” – com seu foco no indivíduo, desarticulação em relação à ação política coletiva e baixo potencial crítico em relação a valores capitalistas/neoliberais – parece emergir como topos discursivo correlato do “empoderamento feminino”, elemento estruturante, como apontam Gill (2007) e Prudêncio (2020), dos feminismos midiáticos contemporâneos.

2. Estratégias discursivas e produção de humor em Homens?

Considerando a proposta da série Homens?, bem como sua inserção em uma tradição de comédias televisivas masculinas, uma indagação fundamental à compreensão da produção de sentidos nesse produto audiovisual diz respeito às estratégias discursivas por meio das quais a masculinidade narrativizada sob a ótica masculina se converte em objeto do discurso humorístico na produção.

Evidentemente, só poderíamos afirmar a eficácia cômica de tais estratégias junto ao público mediante a realização de estudos de recepção, em que pesem as possíveis diferenças existentes entre percepções masculinas e femininas a respeito das representações presentes nesse tipo de comédia (Hanke, 1998). Embora tal tipo de investigação fuja ao escopo do presente artigo, o exame das estratégias discursivas presentes na série permite-nos traçar reflexões importantes acerca dos recursos cômicos engendrados e de como estes recursos, na medida em que se articulam a um discurso que propõe rir do opressor (e não do oprimido), buscam situar-se em uma discussão de fundo sobre de quem se deve rir no campo do humor4.

No início da trama, os personagens da série, mesmo sem atender a todos os ditames da masculinidade hegemônica, veem-se representados em uma forma dominante de masculinidade; em termos butlerianos, podemos dizer que eles atendem ao chamado desse discurso, assujeitando-se a ele (Butler, 2019) e, somente por isso, poderão, se não ressignificá-lo de maneira radical, ao menos problematizá-lo paulatinamente ao longo dos episódios. Como vimos, essa problematização dirige-se, principalmente, a um componente de poder sobre as mulheres, desdobrado em elementos de força física e violência. Trata-se de um percurso narrativo que coincide com a lógica paródica da produção, que pretende retomar e incorporar o discurso da masculinidade hegemônica a fim de satirizá-lo.

No entanto, para que a sátira funcione, do ponto de vista cômico, é preciso que se observe certa distância entre o discurso a ser satirizado e seu contexto de transmissão, ou seja, o discurso da própria série. Para tanto, dentre as estratégias discursivas que buscam assegurar a comicidade em Homens?, destacam-se a construção de personagens mock-machos; a representação da masculinidade tradicional como anacrônica; e a inversão da realidade. Abordaremos cada uma dessas estratégias a seguir.

2.1. A construção de personagens mock-machos

Os personagens principais de Homens? podem ser identificados com o que Hanke (1998) denomina “mock-macho”. Por esse termo, o autor descreve uma tipologia de personagens, comum em séries de comédia, que se caracteriza pela figura masculina machista que, embora tente a todo custo atingir os ideais da masculinidade hegemônica, quase nunca tem sucesso. Tais personagens colocam em primeiro plano a discussão sobre qual é a definição de “homem”, e seu discurso paródico de masculinidade reconhece a precariedade da masculinidade hegemônica.

Assim, “ao zombar da masculinidade, essas narrativas cômicas simultaneamente apresentam os homens como objetos de riso e como sujeitos que se movem entre ‘velhas’ e ‘novas’ posições de sujeito”. À medida que os personagens masculinos ridicularizam sua autopercepção e riem de si próprios, esses textos cômicos articulam uma “falta de reverência pela masculinidade convencional, especialmente como ela é definida em termos de competência e infalibilidade”5 (Hanke, 1998, p. 76).

Dessa forma, o personagem principal de Homens?, Alexandre, apresenta-se ao público como a materialização de um mock-macho que, depois de passar um ano sem conseguir manter uma ereção, começa a questionar os valores subjacentes à masculinidade hegemônica. A autorreflexão sobre seu relacionamento com as mulheres, com os amigos e com o trabalho, portanto, aparece somente depois de uma suposta falha no seu estatuto de homem. É apenas depois do malogro em alcançar as características sancionadas culturalmente da masculinidade hegemônica que Alexandre busca novas formas de ser homem no mundo.

A primeira cena do episódio inaugural mostra Alexandre e Natasha (que mais tarde se tornaria namorada de Gustavo) relacionando-se sexualmente (Figura 2). Notando a falta de ereção do parceiro, a jovem pergunta: “Cadê ele?”. A comicidade da situação deve-se, em grande parte, à malfadada tentativa, por parte do protagonista, de disfarçar, de maneira quase infantil e com desculpas evidentemente fantasiosas, a obviedade do que se passava: “Ele tá acordando. Tem que acordar ele... É que eu bebi! Eu bebi... Porra, eu tô bebaço! Eu tô com a cabeça girando pra caramba...”.

Figura 2. Alexandre e Natasha em cena do primeiro episódio de Homens?; na imagem à esquerda, o personagem mostra-se preocupado quando percebe que não consegue manter a ereção

Fonte: Capturas de tela realizadas pelas autoras.

Mais adiante, aos 5’06’’ do mesmo episódio, Alexandre conta sobre a situação para os amigos. Ao ser questionado por Pedrinho se ao menos conseguia se masturbar, Alexandre explica: “Não firma. Eu pego, vou tentando, aí vai virando uma maria-mole cor de café com leite e vai enrugando todinho, parece um shitzuzinho”. Em ambas as situações, as estratégias discursivas adotadas buscam produzir comicidade por meio de um registro grotesco, relacionado não apenas à representação do sexo e do baixo corporal, como também ao rebaixamento de um ideal de virilidade constitutivo da masculinidade hegemônica, deixando entrever sua profunda fragilidade. Como nos lembra Terry Eagleton, “a comédia jaz na incongruidade entre como as coisas parecem do ponto de vista olímpico e o zelo com o qual homens e mulheres perseguem seus vários e fúteis projetos” (Eagleton, 2020, p. 46).

No caso dos melhores amigos de Alexandre (Pedro, Pedrinho e Gustavo), é notável que eles não possuem a mesma autoconsciência do protagonista, mas são, eles próprios, também confrontados com situações em que os imperativos da masculinidade hegemônica se tornam prejudiciais para os seus desejos e eles acabam fracassando em alcançar esses ideais. Pedrinho, por exemplo, se apaixona por uma mulher trans; Pedro descobre a traição da esposa; Gustavo é sustentado financeiramente pela namorada. A cada episódio, os personagens são confrontados com situações em que suas masculinidades falham e eles são forçados a se posicionar de outras formas no mundo.

Como parte da estratégia representacional de personagens mock-macho, a série recorre, em toda sua extensão, ao nonsense como recurso estilístico que ajuda a revelar a arbitrariedade e a fragilidade da masculinidade hegemônica. Assim, por meio da justaposição de situações insólitas aos acontecimentos cotidianos da vida dos personagens, revela-se o caráter absurdo de convenções próprias da masculinidade dominante, ridicularizando-as; ao mesmo tempo, recorre-se à incongruência como forma de produzir comicidade, por vezes associada a uma transição abrupta do elevado para o vulgar própria de um humor bathético (Eagleton, 2020).

Um exemplo desse tipo de recurso está presente no episódio 5 da segunda temporada, no qual Gustavo e Natasha aparecem em uma sala de cirurgia, em um hospital (Figura 3). Durante a cena, Natasha (caracterizada como médica), diz para o namorado: “Olá, Gustavo, meu nome é Natasha, e eu vou estar inserindo uma dedeira no seu ânus porque eu gosto”. O rapaz, na pele do paciente aterrorizado, responde, com a voz trêmula: “Tudo bem, como vai? Eu tô um pouco nervoso, só queria saber uma coisa: é um caminho sem volta?”. Em uma sequência de ações repleta de falas que emulam um vocabulário “cirúrgico”, vemos Natasha realizar o “procedimento”, ainda no contexto da sala hospitalar; após os dois atingirem o orgasmo, Gustavo revela-se preocupado quanto à própria heterossexualidade: “Ô, doutora, que horas que a psicólogo chega? Porque eu gozei também e eu queria muito falar sobre isso”.

Figura 3. Nonsense como recurso estilístico no episódio 5 da segunda temporada de Homens?

Fonte: Captura de tela realizada pelas autoras

Para Hanke (1998), a construção de personagens mock-macho convida ao riso ao parodiar os estereótipos machistas e, temporariamente, privar a norma hegemônica de sua reivindicação de uma identidade de gênero naturalizada ou essencializada. Assim, essa “estratégia representacional, que (re)apresenta e joga com o estereótipo, oferece a oportunidade para a reconstituição de normas hegemônicas, ou, alternativamente, para sua renegociação, em virtude do fracasso em incorporar completamente a norma”6 (Hanke, 1998, p. 89).

Do ponto de vista de sua lógica interna, temos uma forma de comicidade cuja motivação pode ser atribuída à suspensão temporária do ordenamento do mundo por meio do humor (Eagleton, 2020). No mesmo sentido, vão as imagens grotescas que integram a produção. Ligadas ao sexo, ao baixo do corpo, aos fluidos corporais, tais imagens, através de um nivelamento carnavalesco, alinham-se à concepção bakhtiniana de comédia como forma de realismo (Bakhtin, 2010), ou seja, como revelação da “verdadeira forma” do mundo. Essa dimensão realista do grotesco, ao assumir a “sacralidade” da masculinidade hegemônica como objeto de ridicularização, talvez constitua a mais crítica das estratégias discursivas presentes na série, em um movimento de constante destituição do lugar de autoridade de masculinidades dominantes.

Não obstante, é preciso lembrar que o riso carnavalesco não apenas destitui e nivela – mas também restaura e regenera; da mesma forma, o discurso da série parece ir do cômico ao cósmico (Eagleton, 2020) ao recolocar o mundo em ordem através da representação de masculinidades alternativas à masculinidade hegemônica e, sobretudo, a uma “masculinidade tóxica”. Tais alternativas condensam-se na figura do “homem desconstruído” que se materializa na trajetória do protagonista Alexandre, verdadeiro herói (cômico) da narrativa. Nesse sentido, Homens? parece distanciar-se da postura de cinismo recorrente em comédias de mock-macho (Hanke, 1998) ao propor uma forma de humor que assume claramente um lado, convidando o público a rir da masculinidade e dos homens, fato que pode explicar o incômodo verificado em manifestações de parte da audiência sobre a série (Lemos, 2020).

2.2. Masculinidade tradicional como anacronismo

Em Homens?, os imperativos da masculinidade hegemônica são apresentados constantemente para o espectador: seja nos próprios personagens principais que falham em atingir o estatuto da masculinidade hegemônica ou mesmo nas mulheres da trama que, em muitas situações, reproduzem falas e comportamentos machistas.

Alguns personagens personificam esses ideais de forma mais contundente. É o caso, por exemplo, de Luiz (Paulo Reis), pai de Alexandre, apresentado como o personagem machão clássico que se preocupa em fazer sexo com o maior número de mulheres possível; o chefe da agência de publicidade (Adriano Garib), que valoriza peças com mulheres bonitas e estereótipos de gênero; e os colegas de escola do protagonista, apresentados durante um reencontro da antiga turma em que fazem piadas machistas a todo o momento. Neste segundo caso, assumindo o olhar de desconforto de Alexandre diante da situação, a série propõe um distanciamento crítico em relação ao que Eagleton (2020) descreve como um tipo de humor masculino que se presta à manutenção das convenções (e, portanto, repressões) que constituem a masculinidade.

No caso da relação entre Alexandre e seu pai, o conflito entre “novas” e “velhas” masculinidades assume os contornos de um conflito geracional. Uma das cenas que melhor ilustra essa relação aparece aos 45’’ do episódio 5 da segunda temporada, na qual Luiz conversa e joga cartas com amigos da mesma idade na casa do protagonista. A diferença etária é reforçada pela composição do quadro, em que os personagens mais velhos ocupam o primeiro plano, enquanto Alexandre encontra-se isolado, no segundo plano da imagem (Figura 4). No diálogo, em que os personagens mais velhos contam piadas sexistas e de duplo sentido, o efeito cômico visado decorre não do conteúdo das anedotas, que parecem mais constrangedoras do que engraçadas, mas do próprio desconcerto da situação:

Luiz: Eu vou ali ver na geladeira se tem o telefone de um delivery.

Alexandre: Não, deixa que eu peço aqui no aplicativo, pai... Vocês comem comida japonesa?

Amigo 1: Mas, se a japonesa já tá comida, a gente vai comer ela de novo?

Alexandre: Tá... Então, posso pedir um japonês?

Amigo 2: Se o japonês vier com o cu depiladinho, eu topo.

Alexandre: Legal... Bom, vamo comer japonês.

Amigo 1: Eu prefiro a mulher do japonês, né...

Alexandre: Posso pedir uma comida que vem do Japão?

Amigo 2: Se der pra quatro...

Alexandre: Vou pedir pizza, então. Vocês comem portuguesa?

Luiz (imitando sotaque lusitano): Só se vier sem bigodes, se não, pinica na hora do boquete.

Alexandre: Tá... Acho melhor pedir do delivery mesmo.

Figura 4. Conflito entre masculinidades é retratado como choque geracional em cena do episódio 5 da segunda temporada de Homens?

Fonte: Captura de tela realizada pelas autoras

Como o exemplo evidencia, tais situações são apresentadas como um comportamento antigo, um resquício anacrônico de uma velha cultura em um tempo atual, que pede mudanças. Para Hanke (1998, p. 89), essa é uma das características da comédia de mock-macho, que costuma codificar a masculinidade como um conflito entre novas e velhas posições de sujeito e, nesse sentido, em alguma medida “fluida”, isto é, “ao mesmo tempo definida e redefinida, ao mesmo tempo real e (re)apresentada”7 (Diana Saco cit. por Hanke, 1998, p. 89). Os personagens estão no entremeio entre o velho e o novo, entre antigas e novas identidades.

Retratar a masculinidade hegemônica como fruto de um anacronismo, contudo, gera um discurso que, ao mesmo tempo em que problematiza os resquícios culturais do passado no presente, desarma a própria crítica que engendra ao retratar essas situações como ultrapassadas. Há, assim, um esvaziamento da crítica ao retratar certos temas como superados. Para Hanke (1998, p. 89), um outro efeito desse tipo de discurso pode ser visto “como parte de um processo hegemônico pelo qual o discurso masculino constitui certas formas tradicionais de ‘masculinidade’ como ‘outro’ para seu novo eu, presumivelmente ‘real’”8. Nesse sentido, no caso de Homens?, a identidade que emerge como legítima é a identidade do “homem desconstruído” – que, embora se torne autoconsciente em relação aos danos gerados por uma “masculinidade tóxica”, não chega a problematizar igualmente todos os componentes da masculinidade hegemônica.

2.3. Inversão da realidade

Como recurso discursivo direcionado à produção de humor, Porchat utiliza, na construção do roteiro de Homens?, algumas estratégias presentes em outras de suas produções, tal como apontado por Rocha (2017). Segundo a autora, em suas crônicas de jornal, por exemplo, Porchat recorre constantemente à ironia e à inversão da realidade como expediente humorístico, ao apelar para situações cotidianas conhecidas pelo leitor e transfigurá-las a ponto de torná-las absurdas com o objetivo de causar estranhamento.

No caso da série em foco neste trabalho, a inversão da realidade se serve vastamente de um diálogo com linguagens midiáticas diversas, o que reforça o tom paródico da produção. É o que vemos no episódio 4 da segunda temporada, por exemplo, no qual uma cena aos 11’07’’ busca ridicularizar um imaginário de masculinidade corrente em filmes pornográficos. Na cena, uma mulher desconhecida chega em trajes mínimos à casa de Alexandre para pedir açúcar – situação que faz parte de uma fantasia erótica conduzida por Pau enquanto o protagonista tenta se masturbar (Figura 4). O “conflito” entre Alexandre e Pau culmina com o desconcerto do primeiro, que diz, dirigindo-se à mulher de sua imaginação ao mesmo tempo em rompe a “quarta parede” referindo-se ao “diretor” da cena: “Desculpa, tudo bem? Eu não queria ter te trazido aqui à toa, mas quem é que vem pedir açúcar de calcinha e sutiã? Não é assim que funciona... Não tenho açúcar, meu amor. Um beijo, viu. Vai lá... E evita sódio, essas coisas, que dá super doença”.

Figura 5. Transfiguração do cotidiano em cena do episódio 4 da segunda temporada de Homens?

Fonte: Captura de tela realizada pelas autoras.

Em Homens?, o recurso humorístico à inversão da realidade é mobilizado também no retrato de situações que revertem os estereótipos de gênero com a proposta de salientar o absurdo do cotidiano. Pedrinho, por exemplo, é assediado no trabalho por Simone (Gisele Fróes), sua chefe mulher, que sutilmente sugere que ele só conseguiria uma promoção caso dormisse com ela. Em uma sequência aos 13’42’’ do episódio 6 da primeira temporada, a inversão de papéis é sintetizada em imagens que mostram Pedrinho chegando ao escritório após corresponder às investidas de sua superior; sob os olhares insinuantes e risinhos de seus colegas (e, principalmente, de suas colgas), o personagem é gradualmente despido até que se encontre em vestes sensuais (Figura 6), situação que externaliza o sentir-se sexualmente objetificado no ambiente de trabalho.

Figura 6. Inversão de estereótipos de gênero em cena do episódio 6 da primeira temporada de Homens?

Fonte: Captura de tela realizada pelas autoras.

Se concordarmos que um recurso humorístico da série está ligado à inversão de sentidos – isto é, a uma representação do “mundo pelo avesso”, que faz com que “a natureza contingencialmente construída da realidade social saia da caixa” (Eagleton, 2020, p. 32) –, é preciso reconhecer o limite cômico (e crítico) dessa estratégia discursiva. Isso porque, como temos procurado evidenciar, a série põe em cena um reordenamento narrativo/discursivo do mundo pela ótica de uma masculinidade autoconsciente – a masculinidade do “homem desconstruído” –, que se coloca como alternativa – e possível solução – aos conflitos de gênero representados.

3. Humor e consumo de ativismos

Um dos recursos comunicativos da série Homens?, para Lemos (2020, p. 9), é o apelo ao merchandising social, que “consiste na veiculação em tramas e nos enredos das produções de teledramaturgia de mensagens socioeducativas explícitas, de conteúdo ficcional ou real”, a partir do diálogo com situações da realidade social. Ao longo dos episódios, o machismo é retratado em cruzamento com formas diversas de opressão, preconceito e exclusão, o que faz com que a série se identifique com um discurso social mais amplo de consumo de ativismos.

Por “consumo de ativismo”, Domingues e Miranda (2018, p. 1) referem-se ao fato de que “algumas marcas vêm se apropriando dos discursos de grupos e movimentos sociais para se mostrarem mais atentas e engajadas com as demandas do tempo presente”; com isso, tentam transformar “o que seria uma relação de potencial confrontação entre consumo e ativismo num cenário de consumo de ativismo disseminado por empresas dos mais diversos setores”.

A partir dessa definição, o caso de Homens? parece ser indiciário de um espraiamento da tendência ao consumo de ativismos – já bastante evidenciado nos casos da moda e da indústria da beleza, por exemplo – para o campo do humor. (Não à toa, reconfigurações nesse sentido estão presentes também em vídeos para o YouTube do canal Porta dos Fundos – mesma produtora responsável por Homens? –, um dos gigantes de humor da plataforma). De fato, o componente “ativista” foi vastamente apontado como aspecto positivo na recepção crítica da produção, elogiada por colocar em cena a “masculinidade tóxica” (Prisco, 2020, online) e recomendada para pessoas “dispostas a questionar valores humanos de toda espécie, em busca de um mundo mais prazeroso para todos” (Padiglione, 2020, online). A série foi destacada também por valorizar a “presença de mulheres atrás das câmeras” e porque “o ator [Fábio Pochat] faz questão de saber a opinião das atrizes que atuam na série na hora de concluir o texto” (Amendola & Godinho, 2020, online).

Essa dimensão ativista é reforçada também em declarações por parte da instância de produção de Homens?. A atriz Giselle Batista, por exemplo, afirmou que “a série é super crítica, coloca o homem diante desse mundo bem mudado, com mulheres fortes e cheias de opinião” (Giselle Batista cit. por Vilanova, 2020, online); já para Lorena Comparato, que interpreta Tainá, prostituta que se torna “conselheira” de Alexandre, “essa série também é legal para as mulheres terem um pouco de esperança e verem que, talvez, esteja acontecendo uma onda de reestruturação dos homens” (Lorena Comparato cit. por Vilanova, 2020, online). Chama a atenção ainda a preocupação por parte de Porchat, expressa em entrevistas concedidas em diferentes ocasiões, em sublinhar a possibilidade de conciliar ativismo e humor, sem que o segundo seja subsumido no primeiro: “Apesar de falar de um monte de assunto delicado, sensível e importante, uma coisa que sempre ressalto é que não é uma ‘lacromédia’. A gente não quer lacrar, a gente quer fazer graça” (Fábio Porchat cit. por Vilanova, 2020, online).

De volta ao exame das estratégias discursivas articuladas na produção em foco, convém observar que a apropriação de discursos de movimentos sociais na série Homens? acontece de tal modo que, ao longo da narrativa, não basta apenas desmascarar a “masculinidade tóxica”; é preciso incluir o maior número de reflexões sociais possíveis na trama. Assim, como forma de tensionar a temática do machismo, as discussões não se limitam a questões relacionadas à masculinidade dominante, transbordando para ativismos diversos, tais como o corpo diferente e gordofobia; etarismo; transexualidade; aborto; desigualdade no mercado de trabalho; relações amorosas abertas, entre outros – todos temas que desfilam pela série, sem necessariamente serem aprofundados em sua estrutura diegética, em uma tentativa de abarcar o maior número de pautas ativistas possível.

Evidentemente, tal estratégia reflete uma tentativa de articulação de capital social para a série, elemento de distinção fundamental em um contexto de reconfiguração da cultura do consumo marcado pela emergência do consumo responsável (Fontenelle, 2017), com o consequente reposicionamento de marcas, empresas e ações publicitárias, que buscam cada vez mais ser e mostrar-se responsáveis socialmente (Domingues & Miranda, 2018). Nesse sentido, estão em jogo convocações ao consumo (Prado, 2013) que interpelam o consumidor/espectador a ocupar um papel discursivo cujo ideal de “bem-viver” é representado por uma postura de ativismo contestatório multidirecional. Não deixa de ser irônico, nesse sentido, o fato de a própria trama apresentar uma crítica ao consumo de ativismos a partir da representação de uma postura oportunista, por parte da agência de publicidade em que Alexandre trabalha, em relação a pautas sociais, como empoderamento feminino e aceitação do corpo gordo.

Não obstante, se, por um lado, a série pode ser problematizada por localizar-se, ela própria, na esteira de uma tendência ao esvaziamento de possibilidades contestatórias pelo consumo, é preciso lembrar, por outro lado, que o consumo constitui uma forma por meio da qual cidadãos exercem seus poderes políticos a partir da esfera privada (Domingues & Miranda, 2018). Indo além, a afirmação de um sentido de resistência pela cultura do consumo (Fontenelle, 2017) torna-se particularmente significativa quando consideramos a singularidade das disputas simbólicas no campo do humor, marcadas pelo debate em torno de temas como o estatuto da ofensa, a representação do Outro e os limites da liberdade de expressão. Em outros termos, a posição assumida pela série contrapõe-se a tendências correntes na cultura humorística contemporânea que se dirigem a grupos marginalizados e minorias sociais como alvos sistemáticos do humor.

Considerações finais

Como procuramos discutir ao longo do artigo, as estratégias discursivas presentes na série Homens? buscam tensionar – ao menos parcialmente – representações e sentidos de masculinidade hegemônica. Se, por um lado, os quatro protagonistas distanciam-se, em diferentes graus, de componentes dessa masculinidade dominante, outros aspectos permanecem intocados, como sua heterossexualidade.

Ainda assim, a produção se destaca em relação a outras comédias masculinas pelo fato de apresentar, na trajetória dos quatro amigos e, em especial, do protagonista Alexandre, personagens claramente conscientes dos privilégios masculinos, preocupados em se tornar homens melhores, dispostos a ser menos violentos e mais empáticos em relação às mulheres e a outros homens. Em outros termos, um contexto de crise da masculinidade dominante é assumido não apenas como pano de fundo, mas sim, como motor diegético da produção.

Da mesma forma, a série destoa em relação a certo “cinismo” ou “ambiguidade” identificados por Hanke (1998) nas chamadas comédias de mock-macho; isso porque o exame das estratégias de produção da comicidade em Homens? revela a assunção de componentes da masculinidade hegemônica – em especial, o que poderíamos denominar como “masculinidade tóxica” – como alvo prioritário do humor. Em outras palavras, a série convida seu público a rir dos homens – ainda que nada impeça que se ria com eles.

Entre os limites que podem ser simultaneamente identificados em relação à criticidade e à comicidade da série, destaca-se seu movimento discursivo do cômico ao cósmico (Eagleton, 2020), que recoloca o mundo em ordem pela representação de masculinidades alternativas condensadas na figura do “homem desconstruído”. Reforçada pela representação do machismo como anacronismo, tal estratégia discursiva termina por desarmar a própria crítica que engendra, o retratar comportamentos opressivos como arcaísmos que estariam, ao menos em parte, superados.

De maneira geral, o que os limites identificados em relação às potencialidades críticas da série Homens? parecem sugerir, como aponta Neville (2009), é que a potência ideológica do ideal hegemônico de masculinidade continua atuando como uma força centrífuga mesmo em produções que buscam construir representações desviantes, em diferentes níveis, em relação à norma. Isso porque, como aponta a autora, “enquanto novas variações do ideal foram desenvolvidas em anos recentes, é importante lembrar que esses desvios tampouco existiriam ou teriam qualquer valor exceto pela persistência da formação ideal”9 (Neville, 2009, p. 236).

Finalmente, procuramos refletir sobre o que a série sugere em termos do consumo cultural de humor na contemporaneidade. Assim, ao mesmo tempo em que se apresenta como indício do espraiamento de um “consumo de ativismo” (Domingues & Miranda, 2018) para o campo do humor, Homens? se posiciona em relação a um debate de fundo ligado às disputas simbólicas nesse campo, elegendo estruturas de opressão – e seus agentes perpetuadores – como alvo e objeto de seu discurso cômico.

Referências

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1 Tradução nossa. No original: “The parodic mode also indicates a redistribution of some men’s affective investments in past representations in favor of some investment in more up-to-date ones”.

2 Tradução nossa. No original: “[...] “‘mock-macho’ humour suggests that there is no primary or stable meaning of ‘masculinity’, nor is there a single, functional relationship between gender and humor”.

3 Tradução nossa. No original: “these series despict the characters’ feelings and relationships in stories that probe the trials and complexities of contemporary manhood in a manner previously uncommon”.

4 Trata-se de um debate corrente no campo do humor, de ampla circulação midiática, que dialoga diretamente, em sua forma contemporânea, com as críticas que podem ser feitas em relação à atuação dos chamados humoristas “politicamente incorretos” e seu potencial de ofensa contra minorias e grupos marginalizados (Scabin, 2018). Dessa forma, a temática remete às discussões sobre o humor à luz dos limites da liberdade de expressão, uma das principais questões que se colocam ao campo do humor hoje, conforme assinala Sírio Possenti (2018). Longe de constituir uma preocupação exclusiva de nossos tempos, esse debate pode ser relacionado ainda a problemáticas fundamentais à chamada teoria da “superioridade do humor”, como a define Eagleton (2020).

5 Tradução nossa. No original: “By macking a mockery of masculinity, these comic narratives simultaneously present men as object of laughter and as subjects moving between ‘old’ and ‘new’ subject positions” e “lack of reverence for conventional masculinity, especially as it is defined in terms of competence and infallibility”.

6 Tradução nossa. No original: “This representational strategy, which re-presents and plays off the stereotype, offers the opportunity for the reenactment of hegemonic norms, or, alternatively, for their renegotiation, by virtue of the failure to completely embody the norm”.

7 Tradução nossa. No original: “at once defined and redefined, at once real and (re)presented”.

8 Tradução nossa. No original: “as part of a hegemonic process whereby masculine discourse constitutes certain traditional forms of ‘masculinity’ as ‘other’ to its new, presumably ‘real’ self”.

9 Tradução nossa. No original: “While new variations of the ideal have been developed in recent years it is important to remember that these deviations would neither exist nor have any value except for the persistence of the ideal formation”.