Analogias populistas na narrativa presidencial: contrapontos à ciência na pandemia da COVID-19
Populist analogies in the presidential narrative: couterpoints to science in the COVID-19 pandemic
Analogías populistas en la narrativa presidencial: contrapuntos a la ciencia en la pandemia de COVID-19
e-ISSN: 1605 -4806
VOL 26 N° 115 septiembre - diciembre 2022 Monográfico pp. 134-151
Recibido12-07-2022 Aprobado 14-12-2022
Vinícius Borges Gomes
Brasil
Universidade Federal São João del-Rei
vini-bg@hotmail.com
Carla Montuori Fernandes
Brasil
Universidade Paulista (UNIP)
carla.montuori@docente.unip.br
Luiz Ademir de Oliveira
Brasil
Universidade Federal de Juiz de Fora
luizoli@ufsj.edu.br
Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar se e como o presidente Jair Bolsonaro (PL) operou um discurso populista a partir das narrativas proferidas durante as lives presidenciais exibidas na rede social Facebook nos meses de março e abril de 2021. Parte-se da hipótese que considera que a comunicabilidade do presidente utiliza estratégias populistas de antagonismo e contra-argumentos na relação com a autoridade epistêmica. Conteúdos voltados às percepções, opiniões e estratégias no combate à crise sanitária moldaram as pautas elencadas pelo governante e são elementos centrais para entender seus antagonismos e construções narrativas de unificação do movimento que lidera. A pesquisa também propõe a compreensão das especificidades existentes na dinâmica política e midiática do governante: o Populismo Bolsonarista. Como método, a pesquisa utiliza a Análise de Conteúdo.
Palavras-chave: Negacionismo, Populismo contra a ciência, Redes sociais, Populismo Bolsonarista.
Abstract
This article aims to investigate whether and how President Jair Bolsonaro (PL) operated a populist speech from the narratives given during the presidential lives shown on the social network Facebook in March and April 2021. that the president’s communicability uses populist strategies of antagonism and counter-arguments in relation to epistemic authority. Content focused on perceptions, opinions and strategies in the fight against the health crisis shaped the guidelines listed by the government official and are central elements to understand his antagonisms and narrative constructions of unification of the movement he leads. The research also proposes the understanding of the existing specificities in the political and media dynamics of the ruler: Bolsonarista Populism. As a method, the research uses Content Analysis.
Keywords: Denialism, Populism versus Science, Social media, Bolsonarist Populism.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo investigar si y cómo el presidente Jair Bolsonaro (PL) operó un discurso populista a partir de las narrativas dadas durante las vidas presidenciales mostradas en la red social Facebook en marzo y abril de 2021. que la comunicabilidad del presidente utiliza estrategias populistas de antagonismo y contraataque. argumentos en relación con la autoridad epistémica. Contenidos enfocados en percepciones, opiniones y estrategias en la lucha contra la crisis sanitaria conformaron los lineamientos enumerados por el gobernante y son elementos centrales para comprender sus antagonismos y construcciones narrativas de unificación del movimiento que lidera. La investigación también propone la comprensión de las especificidades existentes en la dinámica política y mediática del gobernante: el populismo bolsonarista. Como método, la investigación utiliza el Análisis de Contenido.
Palabras clave: Negacionismo, Populismo versus ciência, Redes sociales. Populismo bolsonarista.
1. Introdução
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o planeta estava em meio a uma pandemia. O vírus SARS-CoV-2, popularmente chamado de novo coronavírus, já havia se espalhado por todos os continentes e, enquanto provocava sérios danos a alguns países, ameaçava tantos outros dada a iminência do aumento de contaminações e, consequentemente, de mortes. As autoridades sanitárias advertiram que medidas urgentes deveriam ser tomadas, a fim de retardar a curva de casos e preparar os sistemas de saúde para o provável aumento da ocupação de leitos hospitalares.
No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado no dia 26 de fevereiro de 2020. Apesar de manifestações cautelosas por parte do Ministério da Saúde, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), tratou de abordar a pandemia sob uma perspectiva mais relativista desde o princípio. Baseando-se em dados preliminares sobre a pouca gravidade da doença na maioria dos contaminados, o político imprimiu uma prática objetiva desde o começo da crise e a sustentou nos meses seguintes: a economia não poderia sucumbir às ações pedidas por autoridades científicas no sentido de retardar a onda de contaminações.
Para compreender como se deu esse processo de lidar com a grave crise sanitária vivenciada no Brasil, é preciso entender o contexto político e, a partir dele, observar como operam os conceitos forjados pelo movimento de apoio ao presidente, chamado preliminarmente de bolsonarismo. Concomitantemente, ao perceber a polarização criada a partir dos antagonismos forjados no discurso do presidente Bolsonaro, propõe-se a observância da possível articulação de algumas características do populismo: sacralização da imagem do líder, abordagem dos adversários como inimigos do povo e construção de um canal direto de comunicação com apoiadores (Finchelstein, 2019; Eatwell; Goodwin, 2020).
Outro ponto de interesse versa sobre a especificidade da relação com o campo científico por parte do discurso populista. Alguns estudos sugerem que governos populistas tendem a produzir ações e narrativas que confrontam a autoridade epistêmica e questionam o papel da ciência (Ylä-Anttila, 2018; Medee; Schäfer 2020; Amend; Barney, 2016). O contexto pandêmico oferece amplos elementos para estudar se existem, na prática comunicativa do presidente brasileiro, características de um populismo em relação à ciência. Ao se desenvolver em uma ambiência midiática marcada pela força das redes sociais on-line, também interessa ao trabalho o conceito de populismo digital (Cesarino, 2019) para empreender uma análise das estratégias comunicativas utilizadas por Bolsonaro, conhecido por privilegiar as redes como espaços centrais de seu aparato comunicacional.
Nesse sentido, a questão central que se apresenta à pesquisa é a seguinte: é possível identificar elementos de um populismo em relação ao campo científico em face da conjuntura experimentada pelo Brasil diante da pandemia da COVID-19 na comunicação do presidente Bolsonaro? É interesse saber, ainda: qual o lugar da autoridade epistêmica a partir das narrativas de Bolsonaro no que tange aos temas relacionados à crise sanitária? Também, apresentam-se como questões o entendimento de como são articulados os elementos do populismo em suas linhas gerais e quais as especificidades trazidas pelo ex-capitão que podem indicar a existência de uma dinâmica específica de populismo a partir do movimento liderado por ele.
Como objeto de estudo, a pesquisa opta por um recorte temporal das transmissões ao vivo promovidas por Bolsonaro em seus canais oficiais nas redes sociais. Por se tornarem centrais ao comportamento do presidente, reúnem elementos fundamentais para o interesse da análise: são espaços altamente privilegiados pelo presidente na comunicação com seu público; exprimem aspectos relacionados à prática governamental à medida que funcionam como programas de prestação de contas; e possuem um caráter genuinamente interativo e exclusivista, fortalecendo a relação do líder com seus apoiadores mais engajados.
Como metodologia, a pesquisa apresenta uma Análise de Conteúdo qualitativa das lives presidenciais transmitidas semanalmente durante os meses de março e abril de 2021 – sendo nove programas com média de uma hora de duração cada um.1
2. Populismo, ciência e razão neoliberal: articulação epistêmica de contestação à autoridade científica
O ataque de políticos considerados populistas às autoridades científicas bem como a a descredibilização de instituições mediadoras permitem que haja um questionamento e uma investigação a respeito de como formas de populismo contemporâneas têm operado face à conjuntura de digitalização da política e da amplificação de circulação de conteúdos alheios aos campos sociais constituídos em seus lugares de poder.
Ylä-Anttila (2018) propõe dois conceitos importantes para abordar o que ele chama de conhecimento populista ou política da pós-verdade. O primeiro é o populismo epistemológico, segundo o qual o conhecimento é baseado nas experiências de pessoas comuns. O contraconhecimento se refere às contestações da autoridade epistêmica ao defender autoridades de conhecimento alternativo. Ylä-Anttila (2018) lembra que o conhecimento e formas de especialização estão largamente disponíveis para todos. Todavia, grande parte da sociedade não dispõe dos recursos e energia para apreendê-los. O autor argumenta que a crença no conhecimento alternativo não é mera irracionalidade, mas parte de uma insegurança ontológica, que pode influenciar no descrédito que muitos passam a alimentar diante de autoridades do conhecimento tradicional para depositar confiança em outras lideranças.
Medee e Schäfer (2020) propõem o conceito de “populismo relacionado à ciência” para estudar as experiências populistas em relação à autoridade epistêmica, especialmente considerando seus fatores políticos associados. Os autores delimitam o conceito a partir da construção de um antagonismo entre “povo” e “elite” – aspecto central do populismo – dentro de formulações epistemológicas, mais do que políticas, econômicas ou culturais. Dessa forma, o “povo” é constituído pelas pessoas comuns, seus valores, experiências, sentimentos e visões de mundo. A “elite acadêmica” é questionada, vista com desconfiança e colocada como um ente a ser confrontado.
O “povo” compartilha valores, interesses e emoções alegadamente sustentados pelo crivo da experiência pessoal. Para Medee e Schäfer (2020), o populismo relacionado à ciência atribui virtuosidade ao bom senso. No caso das “elites acadêmicas”, a crítica populista se dá num nível mais circunscrito. A crítica aqui se faz com relação à autoridade epistêmica e seu poder decisório ou de influência. Ela passa a ser vista com desconfiança ou como parte de uma articulação que objetiva ferir valores universais e morais compartilhados pelo povo. Os ataques podem ser a atores específicos, como estudiosos e professores, como também a instituições e entidades que promovem pesquisas e publicações (Medee e Schäfer, 2020).
O papel das instituições acadêmicas também faz parte do rol de questionamentos e de contra-argumentações presentes no debate. Hannah Arendt (1972) sustenta que verdades inoportunas emergiram e emergem das universidades, o que as coloca sob a mira do poder que possam ameaçar. Porém, é a própria existência desses locais que garante a possibilidade de resistência a discursos autoritários. É em relação à democracia que a autora assenta sua principal preocupação para com a possibilidade de um domínio da falsificação. A filósofa alerta para o risco de governantes e governos lançarem mão da representação de modo desmedido, principalmente quando a fragilidade institucional ou a corrosão das instituições favorece esse cenário.
Medee e Schäfer (2020) também indicam que uma das possibilidades de ação do “populismo relacionada à ciência” pode estar em ideologias hospedeiras, como é o caso do liberalismo econômico, buscando promover soluções de mercado em vez de soluções prescritas por especialistas. A perspectiva da influência econômica em ataques epistêmicos engendrados no campo político também é sustentada por Caponi (2020) ao analisar a situação brasileira diante da pandemia da COVID-19. A autora, em face dos números alarmantes diante da crise humanitária e sanitária vivida pelo País, aponta três contextos precedentes que estão diretamente ligados às consequências experimentadas: questões epistemológicas vinculadas ao negacionismo científico, questões ético-políticas vinculadas aos direitos humanos e estratégias biopolíticas vinculadas à razão neoliberal.
Para a autora, o negacionismo se revela na aceitação das intervenções sem validação científica, como a defesa de ações terapêuticas sem eficácia comprovada ou a proposição de um isolamento vertical2 na contramão das orientações da OMS. As medidas são atreladas, uma vez que, existindo um tratamento eficaz, o isolamento se faz relativizado e há uma justificativa para flexibilizações. Caponi (2020) sustenta que imposição de medidas sanitárias e com potenciais riscos indica um flagrante desrespeito aos direitos humanos, porque assemelha os usuários a cobaias em uma espécie de “estado de exceção”.
A razão neoliberal é percebida num contexto de desmanche da proteção social em favor de uma responsabilização individual do sujeito. O Governo de Bolsonaro, embora tenha estabelecido um auxílio emergencial em meio à pandemia, a exemplo de várias nações do mundo, sempre colocou a perspectiva econômica numa medida de legalidade operacional mais do que de proteção social. Para ajudar o trabalhador, o Governo deveria permitir que este trabalhasse e não necessariamente ofertar um suporte econômico para que cumprisse medidas de distanciamento social.
Cesarino (2019) indica cinco ressonâncias do populismo digital. conservador e do neoliberalismo: linguagem, verdade, subjetividade, mediações e invisibilidade. A linguagem é apontada como simples, vaga, redundante, reducionista e, frequentemente, binária. Ela é similar ao domínio neoliberal e aos discursos de autoajuda e coaching. A linguagem performativa visa a gerar efeitos emotivos, apelar ao sentimento e produzir efeitos sobre os interlocutores.
Para falar do conceito de verdade nessa relação, Cesarino (2019) recorre a Mirowsky (2019), segundo o qual o pensamento neoliberal teria criado uma doutrina epistêmica para se opor ao ímpeto planejador e intervencionista do socialismo e da social-democracia. A verdade só poderia emergir após a livre interação dos agentes individuais do mercado. Dessa forma, nenhum indivíduo ou instituição teria acesso privilegiado à verdade, incluindo o Estado, as agências e, tampouco, a ciência.
Os sujeitos comuns vêm perdendo, cada vez mais, a confiança nas instituições tradicionais, como é o caso da ciência e do jornalismo profissional. A descrença com a política é potencializada na desconfiança junto ao espectro democrático. O conceito de subjetividade, segundo Cesarino (2019), explica a forma como os cidadãos passam a buscar valores e certezas de segurança diante da crise de confiabilidade nas instituições tradicionais. O potencial das redes sociais e a possibilidade de dialogar, expressar opiniões e irmanar-se com semelhantes com os mesmos pensamentos potencializam novas estruturas narrativas em circulação, que ganham rápido poder de disseminação.
3. As lives: formato, estrutura e intencionalidades
O populismo digital (Cesarino, 2020) versa sobre a digitalização do populismo que oferece maior domínio por parte do líder na relação comunicativa com seus apoiadores: os conteúdos se espalham por outros canais a partir da replicação e capacidade viral, como é caso das lives. É comum às práticas populistas o estabelecimento de contato direto com eleitores. Ferreira (2021) aponta que, já nas eleições de 2018, o recurso das lives no Facebook foi uma das estratégias centrais da campanha bolsonarista. O formato simples e direto da transmissão conseguiu fidelizar uma audiência considerável e obteve o maior número de interações se comparado ao candidato adversário, Fernando Haddad (PT). O autor afirma que Bolsonaro foi o candidato que mais se aproximou da dinâmica própria do meio digital pela predominância do uso de linguagem coloquial, vídeos de curta ou média duração, impostação vocal e previsibilidade da retórica através da repetição de suas crenças e valores.
No caso de Bolsonaro, as lives presidenciais de quinta-feira se constituem como espaços privilegiados para comunicar as ações do Governo. O presidente anunciou a realização das lives no começo de 2019 ainda no princípio do Governo. As lives possuem roteiro previamente preparado pelo presidente e sua equipe. Basicamente, a estrutura dos programas consiste em: (a) saudação inicial com contextualização geral da semana; (b) lista de notícias de ações do Governo e/ou matérias jornalísticas sobre temas pertinentes e comentários destas; (c) entrevista feita pelo presidente aos(às) convidados(as), a fim de que eles(as) falem dos temas principais da live; (d) entrevista com perguntas gravadas de jornalistas das mídias retransmissoras parceiras ao presidente e aos(às) convidados(as); e (e) encerramento com saudação e contabilização de audiência. A transmissão é feita às quintas-feiras, às 19 horas. A duração costuma ser, em média, de uma hora.
3.1 Metodologia
O método de análise busca responder às questões geradoras da pesquisa. Se a narrativa do presidente Bolsonaro, constitui-se como um discurso populista relacionado à ciência, sobretudo em relação às medidas de enfrentamento à pandemia do coronavírus e seus desdobramentos no País. Ainda, cumpre investigar qual o lugar da autoridade epistêmica dentro da narrativa governista empreendida pelo presidente no que tange aos aspectos ligados à sua função constitucional de liderar o Brasil em meio a uma crise sanitária. Também, é objeto de investigação se e de que modo a narrativa do presidente está calcada em elementos do populismo em suas principais vertentes.
Toma-se como instrumento de investigação a Análise de Conteúdo, com base na obra de Laurence Bardin (2011). Segundo a autora, esse procedimento se dá de acordo com o percurso de três polos cronológicos: (a) pré-análise; (b) exploração do material e (c) tratamento dos resultados, inferências e interpretação. A primeira etapa tem o objetivo de organizar a análise embora ela seja composta de atividades não estruturadas. Passam por esse mecanismo a leitura flutuante e a confrontação com outros documentos bem como a percepção do grau de representatividade dos documentos e objetos analisados para a proposta da pesquisa.
Para proceder com a análise, segundo Bardin (2011), é preciso organizar a seleção do material de modo a extrair unidades analíticas que melhor organizem o material e possibilitem um olhar definidor e interpretativo. Chamam-se esses tópicos de “unidades de registro”, selecionadas em cada live a partir do seu princípio organizativo: a divisão dos assuntos em formatos de pautas. Para cada transmissão, em sua decupagem, houve a divisão temática de cada pauta principal abordadas, classificadas nas seguintes formas:
Tabela 1. Unidades de Registro
Accountability |
Destaque de ações promovidas pelo Governo Federal, tais como: programas sociais, inaugurações, indicadores econômicos e projetos. |
Antagonismos políticos |
Ataque aos adversários e opositores por meio de contraposição, realce de aspectos negativos e proposição do conflito. |
Abordagens sobre a pandemia |
Temáticas voltadas aos temas ligados à pandemia em suas diversas variáveis: científicas, sanitárias, sociais e econômicas. |
Entrevistas |
Resposta às questões trazidas por jornalistas e convidados. |
Fonte - Autores (2021)
As pautas correspondem a quatro naturezas distintas enquanto se sucedem a cada transmissão. Para nomear cada natureza de pauta, observou-se a intencionalidade. Como o objetivo principal das lives é a divulgação do Governo Federal e de seus principais feitos, grande parte dos temas é demonstração de atos do Governo, agendas, inaugurações, projetos de leis e ações dos Ministérios, chamadas aqui de Accountability. Os Antagonismos políticos correspondem aos comentários e pautas destinados a rivalizar e criticar adversários e inimigos políticos. As Abordagens sobre a pandemia são pautas exclusivamente sobre a pandemia da COVID-19 e se diferem das demais por serem expressões de caráter opinativo e conceitual mais do que prestação de contas. Para efeitos dos objetivos do trabalho, foi possível identificá-las como uma variável importante e exclusiva na cartilha de modos de expressão do presidente. Por fim, as Entrevistas correspondem à participação de jornalistas com perguntas quase sempre voltadas às pautas já elencadas na live.
O tratamento dos resultados cumpriu a observância de padrões de ocorrência para a construção de um quadro interpretativo mais aprofundado e, consequentemente, de um panorama categorial que permita inferir, a partir das unidades de registro, quais foram as recorrências, como elas operam e o que revelam do aparato simbólico proferido pelo presidente, a quem interessa o olhar da pesquisa.
Na Tabela 2 a seguir, estão especificadas as categorias de análise e breves elementos sobre como elas estão presentes transversalmente nas narrativas de cada live.
Tabela 2. Categorias de Análise
Categoria principal |
Descrição |
Subcategorias |
Populismo científico e pandemia |
Posicionamentos populistas com relação à pandemia: defesa de métodos, teses, medicações e protocolos antagonísticos aos propostos pelas principais autoridades sanitárias. |
Oposição ao distanciamento social |
Medidas farmacológicas sem comprovação científica |
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Relativização das vacinas |
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Cientificismo do Governo |
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Maniqueísmo e conflito |
Manejo de ataques deferidos a adversários (pessoas e instituições) de modo a criar contraposição entre o bem – Bolsonaro e seu grupo – e o mal – inimigos do povo. |
Governadores e prefeitos |
Imprensa |
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Outros |
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Líder do povo |
Autopromoção pessoal de um líder próximo ao povo, dedicado em ouvi-lo e atento aos sofrimentos e desafios. |
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Estado Nacionalista |
Promoção das ações do Governo com aspectos de ineditismo, calcado no protagonismo militar e na defesa de uma economia neoliberal. |
Neo Estado Militar |
Razão Neoliberal |
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Conservadorismo |
Fonte: autores (2021).
3.2 Análise categorial
Após análise do objeto e obtenção das principais categorias relativas ao modo de comunicação estabelecido na dinâmica das lives semanais do presidente Bolsonaro, estabelece-se uma análise qualitativa com base em exemplificações e apresentação das principais inferências; ao fim, alguns elementos gerais sobre a construção do populismo bolsonarista e suas implicações relacionadas à ciência.
3.2.1 Populismo e ciência
No escopo da compreensão sobre populismo, a ação de líderes nacionalistas chama a atenção, especialmente por sua relação com alguns campos sociais centrais: a mídia, as artes e a ciência. Sobretudo com relação à última, há uma atenção mais especial dada a importância das pesquisas na busca por medidas de prevenção, desenvolvimento de vacinas e medicamentos e provisão de dados sobre o vírus e seus impactos na sociedade.
3.2.1.1 Oposição ao distanciamento social
O presidente Bolsonaro sempre se opôs a qualquer medida de distanciamento social. Limitou-se a dizer que apenas os mais frágeis e idosos pudessem ser protegidos. Embora Bolsonaro constantemente se refira ao lockdown, poucas foram as medidas de restrição mais severas adotadas no País. Muitas delas ocorreram em horários específicos ou se limitaram a períodos mais curtos quando houve estresse total sobre o sistema público de saúde. A crítica de Bolsonaro às medidas restritivas mobilizou seus apoiadores e tem sido a tônica de muitos dos ataques feitos pelo seu grupo político, sobretudo ao culpabilizar as restrições às atividades comerciais, turísticas e industriais como as principais causadoras da crise econômica pela qual passa o Brasil.
Embora a adoção do lockdown não seja uma medida amplamente defendida, notadamente por trazer efeitos econômicos, ela consiste em um recurso indicado a depender da situação de determinadas localidades, especialmente as mais extremas. Porém, Bolsonaro utiliza declarações pontuais sobre lockdown para se opor a qualquer medida de distanciamento social e se aproveita de recortes de textos, falas, vídeos e/ou notas para referendar sua posição, que reverberou na recusa em coordenar um plano nacional para estruturar as medidas de distanciamento – ações que recaíram sobre governadores e prefeitos com planos e projetos específicos.
Há que se registrarem algumas práticas simbólicas muito comuns no discurso de Bolsonaro no que tange à sua crítica às medidas de distanciamento social. O presidente busca encarnar uma projeção heroica do líder que assume as dores de seu povo contra o inimigo maior. Na conjuntura, o presidente é o defensor dos desempregados e impactados pelos efeitos econômicos decorrentes da pandemia. Para tanto, estabelece uma estável contraposição a qualquer ação que impeça o funcionamento do comércio, por exemplo. Aliado a isso, o líder se coloca como o mantenedor social das garantias de sobrevivência ao prover o Auxílio Emergencial, compreendido por ele como uma resposta à maldade de prefeitos e governadores que não como uma política pública eminentemente necessária diante da crise sanitária inesperada.
3.2.1.2 Medidas farmacológicas sem comprovação científica
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é o órgão máximo que garante o registro e o controle sanitário a fármacos, imunizantes, alimentos, cosméticos e serviços de saúde dentre outros. No entanto, apesar da necessária chancela da Anvisa para que medicamentos sejam usados e vendidos, alguns fármacos já populares começaram a ser indicados como possíveis instrumentos para tratamento da COVID-19. Em outubro de 2020, a OMS, por meio dos resultados do Estudo Solidariedade, apontou que quatro tratamentos medicamentosos avaliados (remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir e interferon) tiveram pouco ou nenhum efeito na mortalidade geral, início da ventilação e duração da internação em pacientes hospitalizados.
Bolsonaro instrumentalizou a defesa de medicamentos sem comprovação científica contra a COVID-19 em associação articulada com outros dos principais pontos levantados por ele. O presidente, em claro distanciamento dos protocolos científicos, buscou associar suas falas a formulações do senso comum, usando, inclusive, ditados populares em sua fala, como no excerto seguinte:
Porra! Tem um velho ditado, eu estou com 65 anos, talvez o mais velho aqui, tem umas 20 pessoas aqui, que dizia lá meus avós: ‘O que não mata engorda’. Se está tomando um negócio pra combater alguma coisa, ‘Ah não tem a comprovação científica’. Não tem! Mas não tem o remédio específico também! Deixa o cara tomar! (11 de março de 2021)
O nome dado ao uso de coquetéis de medicamentos contra a COVID-19 passou a ser taxado de tratamento precoce numa referência ao tratamento imediato tão logo ocorra a contaminação pelo vírus. A defesa dos medicamentos cita o chamado tratamento off label (fora da bula) em alguns momentos. Para Bolsonaro, a autoridade do médico deve ser respeitada e, embora existam precedentes para isso, ele o faz de modo radical e com ânimos exacerbados.
3.2.1.3 Relativização das vacinas
O Governo Federal adquiriu, por meio do Plano Nacional de Imunização, várias vacinas aprovadas pela Anvisa. Apesar disso, Bolsonaro não se colocou como um defensor da campanha vacinal, preferindo uma posição de notória relativização, não só da importância, como da eficácia dos imunizantes.
Sem poder se opor à cultura vacinal do Brasil, Bolsonaro preferiu o silenciamento e a relativização, evitando desagradar os grupos antivacina que constituem parte do seu séquito de apoiadores. A pouca atenção dada ao tema também vai ao encontro das ações de Governo que, como foram mostradas em investigações feitas pela CPI da pandemia, incorreram em atrasos e displicência na negociação com laboratórios.
O que se chama de relativização tem várias manifestações distintas. Há uma dimensão de cunho político e xenófobo, por exemplo, com relação à vacina do laboratório Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, a Coronavac. Bolsonaro se refere a ela como “vacina chinesa do João Dória”, numa forma de depreciá-la ante a possibilidade da criação de uma vacina estritamente brasileira com apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Com relação à vacina da Pfizer, o presidente utilizou o argumento de que o Governo tem precaução com relação a possíveis efeitos colaterais. É como se os manifestos buscassem uma ambiguidade que fale a dois grupos: ao mesmo tempo que admite a compra de vacinas enquanto ato de Governo, justifica-se junto aos apoiadores mais radicais e críticos às vacinas.
Enquanto Bolsonaro ignora órgãos como a Anvisa ao defender medicamentos indicados a outras doenças para tratamento da COVID, ele usa a mesma instituição para justificar certa parcimônia em negociações com laboratórios produtores de vacina.
Bolsonaro deixa claro que o tema vacina é secundário. Limita-se a cumprir a cartilha formal e burocrática. Relativiza os imunizantes, realça riscos e temores, não incentiva a população brasileira a buscá-los e demonstra irritação com a ampla abordagem sobre o tema. Ele próprio, ao justificar o fato de não se vacinar em outros momentos, assume a postura do líder populista que encarna o sacrifício pelo povo e afirma que deverá ser o último a se vacinar. Entretanto, em outro momento, disse que não receberia o imunizante, pois teria anticorpos suficientes para se proteger, contrariando todas as orientações das autoridades sanitárias.
3.2.1.4 Cientificismo político
O cientificismo político se refere à exaltação de pesquisas, estudos, experimentos, hipóteses e teses, que, ao se apresentarem sob a roupagem científica, buscam demonstrar apreço do líder pela ciência desde que ela esteja a serviço de seus próprios interesses e visões de mundo. Acusado de ser um negacionista, Bolsonaro se defendeu inúmeras vezes da acusação ao reforçar algumas ações de seu próprio mandato ou ao se apoiar na presença de personalidades importantes dos Ministérios, com destaque para o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, exaltado pelo seu chefe por ser um engenheiro e astronauta.
No começo de março, numa operação fortemente alardeada pelo Governo, representantes brasileiros estiveram em Israel para uma missão internacional, que, dentre outras pautas, buscava conhecer a pesquisa com um spray nasal contra a COVID-19. Na busca pelo remédio perfeito, a associação com Israel pode parecer crível aos apoiadores e potencialmente exitosa do ponto de vista político, sobretudo quando a vacina ficou muito associada a inimigos políticos, como o governador de São Paulo, João Doria, e à China, atacada por apoiadores e pelo próprio filho do presidente, gerando, inclusive, desconfortos diplomáticos.
O tema do uso de máscaras também é mobilizado na perspectiva de abordar a pandemia. O presidente cita pesquisas sem especificar qual a fonte para aludir a uma possível comprovação de suas teses: “Eu li há duas semanas uma pesquisa do Reino Unido sobre máscara, né? Os efeitos colaterais da máscara botaram na minha conta: ‘Ó, ele tá contra a máscara’. Não cola, não tá colando perante a maioria da população esse tipo de acusação” (11 de março de 2021).
3.2.2 Maniqueísmo e conflito
Entre as principais expressões do populismo, a eleição de inimigos comuns é uma das mais importantes. Para Bolsonaro, há clareza em estabelecer o conflito narrativo por meio de uma estrutura maniqueísta: líder e povo como “cidadãos de bem” diante dos inimigos da Nação. Essa construção se dá, principalmente, a partir da conjuntura da pandemia da COVID-19. Por ser uma crise central e geradora de outras crises, como a econômica, essa temática contribuiu para o estabelecimento de algumas posições constantemente reforçadas pelo presidente.
3.2.2.1 Governadores e prefeitos
Ao se colocar como crítico às medidas de restrição, o presidente Bolsonaro buscou antagonizar sua ação com a de governadores e prefeitos responsáveis por adotar as medidas de fechamento de estabelecimentos, a fim de conter a transmissão do coronavírus. O governante, em alguns casos, demarca que alguns dos políticos estão alinhados a ele, mas costuma generalizar e, em alguns momentos, também cita alguns nomes específicos, em particular aqueles que são adversários políticos, como é o caso do governador paulista Doria (PSDB). Na construção argumentativa de Bolsonaro, o Governo liderado por ele é um bastião de resistência a opressões autoritárias, ignorando qualquer perspectiva sanitária, tampouco a pressão sofrida por mandatários em níveis estadual e municipal, às voltas com as taxas de ocupação de leitos hospitalares em índices exponenciais.
Outro aspecto importante no ataque a governadores e prefeitos se dá no uso dessas ofensivas como instrumentos de defesa às críticas que o presidente sofre. O aumento dos índices de desemprego, por exemplo, faz com que a insatisfação popular atinja o Governo Federal. O presidente não só culpa os governadores como conclama a população a cobrar deles um valor mais robusto para o Auxílio Emergencial além de acusá-los de usar as verbas enviadas para outros fins, como o de deixar recursos em caixa.
A expressão populista emerge em um personalismo isolado. Para o constructo da narrativa bolsonarista, vale mais o culto ao líder central do que o republicanismo, o diálogo e a cooperação. Ainda que, do ponto de vista estratégico e político, a animosidade com outros governantes seja um erro inusual, o objetivo central do bolsonarismo é garantir a aliança popular. Sacrifica-se a ponte política em nome da sustentação do papel heroico do garantidor de liberdade e a roupagem performática é fortemente mantida sem prejuízo de sua ideia original. Observar esses pontos, obviamente, não significa menosprezar a capacidade de articulação política do Governo Federal. Ela ocorre, inclusive sob parâmetros tradicionais do clientelismo clássico do presidencialismo de coalizão brasileiro, mas convive também com a cena política da atuação voltada ao público.
3.2.2.2 Imprensa
Os ataques à imprensa são marcas fundamentais da experiência populista. Apesar das rusgas anteriores com setores da mídia, a postura de Bolsonaro acaba se tornando ainda mais agressiva com o recrudescimento das contaminações pela COVID-19. Não é apenas a crítica à condução governamental que o incomoda, mas, sobretudo, a publicidade dos problemas – fato atestado pelas tentativas do Governo de minimizar dados ou escondê-los.
Acusada de ser mentirosa e alardear a situação da pandemia, a imprensa também é alvo preferencial dos ataques do presidente, com destaque para alguns órgãos, como o Grupo Globo e a Folha de São Paulo. Bolsonaro chegou a ironizar alguns grupos no dia 1º de abril, conhecido por ser o Dia da Mentira.
O próprio cuidado do governante em dizer que nem toda a imprensa é mentirosa tem a ver com os grupos que o sustentam, alguns dos quais presentes nas próprias lives. Alguns programas, jornais e portais são abertamente favoráveis ao Governo e reforçam todas as suas teses, tendo espaço privilegiado em suas agendas e cumprindo o papel de retransmitir os programas e repercuti-los. A associação da imprensa como inimiga do povo também opera em torno das medidas restritivas e na correlação política construída pelo Governo como se os órgãos estivessem agindo apenas para derrubá-lo ou prejudicar a população.
A descredibilização do campo social da mídia é fundamental para a legitimação do líder, sobretudo porque consegue imprimir ao outro a culpabilização pela causa dos problemas. A crise econômica decorrente da COVID-19 só é possível, uma vez que a imprensa mente ou alardeia o que é negativo, como quando o presidente reclama da abordagem sobre as mortes, chegando a chamar a Globo de “TV Funerária”. A distorção da realidade é uma reivindicação.
3.2.2.3 Outros
Além dos inimigos preferenciais, eleitos a partir das conjunturas, Bolsonaro construiu uma tessitura de fundo, que sempre remete ao combate ao comunismo/socialismo – termos que, embora possuam diferenças fundamentais, operam numa mesma valência simbólica para a extrema direita. Com a demonização construída das esquerdas – não apenas do PT –, a atribuição da pecha do socialismo como expressão negativa para descredibilizar o inimigo se torna a tônica. É como se opor-se ao presidente fosse uma forma de, automaticamente, passar a pertencer ao grupo contrário. A simplificação transforma os adversários não só em inimigos do povo, mas em inimigos colocados em um lado que, numa visão de mundo binária, apenas lhes permite pertencer ao campo socialista/comunista. Por isso, os termos seguem em constante uso e insuflem a base em usá-los como formas de tratamento.
Bolsonaro também sugere alguns inimigos de modo indireto, mas que também compõem o mesmo grupo de adversários do Governo e do povo. Um dos alvos é a justiça, com destaque para o Supremo Tribunal Federal (STF). A estrutura semântica reforça o conflito ao utilizar termos como guerra, quatro linhas da Constituição ou câncer do Brasil numa referência ao Poder Judiciário.
3.3.3 Líder do povo
A construção da imagem mítica do líder é uma constante na comunicação de Bolsonaro. Chamado de “mito” por apoiadores, o ex-capitão encarna uma figura que une a simplicidade de um homem comum, que dialoga de forma próxima com os cidadãos, com a de um herói pronto a resgatar o País de mazelas, sobretudo da corrupção.
O presidente mobiliza essa ideia ao abordar a pandemia da COVID-19. Alude ao sacrifício que faz na defesa da liberdade do povo, chama os apoiadores de “irmãos” e pratica várias visitas a pessoas em dificuldade na perspectiva de antagonizar com os inimigos políticos, em particular os governadores e prefeitos responsáveis por adotarem medidas de restrição. Mesmo ao negar qualquer caráter messiânico, Bolsonaro acaba por reforçar o tom sacrificial de sua ação e, por fim, reafirma a performance do líder que está disposto a fazer tudo por seus apoiadores.
A aliança entre líder e apoiadores é sempre corroborada num dialogismo que exige do coletivo o apoio, o referendo e o fortalecimento de seu guia. Bolsonaro reivindica do público a confiança e a unidade dos seguidores de sua religião política. Chega a chamar o povo de “meu exército”, voltando ao léxico militar, e se coloca como fiel à vontade dos que o seguem.
Bolsonaro também se coloca como uma figura mítica e mostra força aos apoiadores que o assistem. Alude a Deus e confirma que nenhuma instituição ou pessoa poderá tirá-lo do poder, reforçando sua disposição em lutar pelo cargo mediante qualquer ameaça. A correlação ao militarismo também está presente, já que o presidente utiliza não só a religião, mas a força militar, confundida com seu próprio grupo de apoiadores, para proteger seu mandato: “Só digo uma coisa: só Deus me tira da cadeira presidencial e me tira obviamente tirando a minha vida! Fora isso, o que nós tamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo, não vai mesmo, tá ok? (15 de abril de 2021)
3.3.4 Estado nacionalista
Ao analisar as unidades de análise constituídas por itens de accountability, foi possível identificar a construção de um ideal de Estado nacionalista na concepção de Bolsonaro. Ele reúne a ideia de valorização do militarismo como força superior do aparato estatal, o ideário econômico neoliberal e o espírito conservador em sua construção: pautas que ele próprio articulou desde a campanha presidencial de 2018.
3.3.4.1 Neo Estado Militar
O militarismo é uma expressão de como Bolsonaro compreende o Estado. Apesar de defender privatizações e outras agendas neoliberais, o presidente reforça os laços institucionais com as Forças Armadas e logra a elas protagonismo nas principais ações de Governo. Ao falar das campanhas de vacinação, o governante exalta sua classe e relembra o papel delas nas ações ainda que seja pontual diante da grandeza e capilaridade do SUS:
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica estão à disposição! Já está acertado com o ministro da defesa Braga Neto: em alguns locais do Brasil, o Exército já está vacinando. Onde tiver uma unidade militar, sempre tem um efetivo de enfermeiros e pelo menos um médico. (08 de abril de 2021).
A exaltação de um Estado com protagonismo militar, em consonância ao silenciamento de políticas públicas consolidadas, exprime uma visão que é não apenas corporativista, mas limitadora do papel do Estado para o País.
3.3.4.2 Razão neoliberal
A Razão Neoliberal se manifesta nas proposições feitas por Bolsonaro no sentido de defender a livre iniciativa econômica e a não intervenção estatal na economia. O presidente lamenta que a pandemia da COVID-19 tenha atrapalhado o que ele considerava um bom momento da economia. A crise sanitária é vista como um obstáculo ao avanço da agenda liberal mais do que como um problema que se impõe e gera alerta. Mesmo ao falar de intervenções governamentais, como a concessão do auxílio emergencial, reforça o endividamento estatal e exprime preocupação por ter que se submeter a uma ação pontual fora do plano econômico que defende originalmente:
É uma pena essa pandemia acontecer, né? Além das mortes que a gente lamenta, obviamente. Mas, além do planejamento, final 2019, você tava acompanhando a gente, o Brasil tava voando na economia: obras, muita coisa! A pandemia vindo atrasou e muito a gente! O nosso sonho de avançar na questão do nióbio, do grafeno, da dessalinização de água, a questão da tabela de imposto de renda, a gente queria mexer também. Muita coisa ficou pra trás. A gente lamenta esse endividamento nosso em mais de 700 bilhões de reais. Vai ter repercussão negativa por muito tempo não só pra nós, mas pras futuras gerações também. (1º de abril de 2021).
A razão neoliberal é transversal na prática e na comunicação construída Bolsonaro. Se oferece benesses estatais, como auxílio emergencial, também reforça uma subserviência convicta aos ditames do mercado. O Governo, reduzido à autoridade militar das obras e projetos clientelistas, abdica de protagonizar determinadas ações e reforça essa opção negociada com o eleitorado.
3.3.4.3 Conservadorismo
Traço marcante da agenda bolsonarista, o conservadorismo reúne as ideias atávicas e presentes em outros momentos históricos, como a ditadura civil-militar (1964-1985), de “Deus, Pátria e Família”. Esses valores são articulados ao líder encarnado por Bolsonaro em sua tentativa de se mostrar solidário e se confundir ao próprio povo. Para o populismo bolsonarista, a experiência conservadora tem traços reacionários e está abraçada à imposição de uma submissão à ideia nacionalista de Pátria totalizante e à negação da autoridade de outros campos científicos em oposição a poderes legitimados, como o bélico-militar, o religioso-cristão e o político encarnado pelo próprio Bolsonaro em sua original manifestação.
4. Considerações finais
O populismo de Bolsonaro opera segundo a performance do herói. Além de se apresentar sob a lógica do homem comum, que se expressa de modo simples, coloquial e próximo ao povo, sua ação é sacrificial, messiânica e corajosa. O mesmo candidato que sofreu um atentado pelo Brasil é aquele que não demonstra temor diante do risco de uma doença que mata milhares.
Nesse aspecto, o Populismo Bolsonarista opera em bases próprias de outras expressões populistas latino-americanas; o messianismo é, também, uma característica de líderes fascistas (Finchelstein, 2019). São comportamentos que buscam a identificação popular por meio de práticas que estão presentes na vida da população. O líder, destemido diante da pandemia, prefere visitar os trabalhadores e pobres de algumas regiões para demonstrar seu apoio diante do resultado das políticas do inimigo: as restrições sociais como medidas de contenção da proliferação do vírus. Estabelece, assim, uma comunicação direta e próxima que reverbera em suas redes e, especialmente, na caixa de ressonância de suas lives de quinta-feira.
A opção por se identificar com os impactados pelos efeitos econômicos também reforça a matriz neoliberal do herói que se quer construir. O discurso está calcado no valor supremo do livre direito de trabalhar e na movimentação da economia. Por isso, ao lamentar os evidentes efeitos econômicos, outra expressão importante do populismo construído por Bolsonaro se revela: a negação da dor, do lamento e da consternação. Apesar de estar ao lado do povo que perde emprego ou passa fome, o líder populista do bolsonarismo se nega a chorar com parte de seu povo, que, por outro lado, vivencia a morte, a dor e os efeitos negativos de uma enfermidade. Prefere exaltar a recusa em se vacinar e a coragem de estar no meio dos cidadãos.
O líder populista forjado na performance bolsonarista é, antes de tudo, um resistente. Não se derrama em lamentos e lamúrias, mas mantem-se na perspectiva de garantir a sustentação do seu discurso inicial: deixar a pandemia em segundo plano, sobretudo a partir do pensamento econômico da produtividade, lucratividade e primazia do mercado. Bolsonaro lembra que o vírus vai continuar existindo e, ao fazer isso, articula uma de suas principais teses: a convivência com um mal posto e a passividade diante do risco iminente de contaminação. É como se o descarte social dos fragilizados não importasse, especialmente quando o foco é salvar os economicamente ativos. Por isso, o Governo foi acusado de promover a tese da imunidade de rebanho – com rápida contaminação, ainda que sob o peso de mortes, o retorno à normalidade seria mais rápido.
No que tange à ciência, Bolsonaro adota uma comprometida relativização e instrumentalização. Desde que submetida à razão neoliberal de sua estrutura política, a ciência é enaltecida e usada como chancela até para se defender dos que o acusam de negacionista. Se o campo científico indicar qualquer que seja a ação que vá de encontro ao seu modelo econômico, há uma rejeição clara. O populismo relacionado à ciência enquanto expressão do Populismo Bolsonarista é aquele que subjuga o campo científico aos interesses neoliberais do líder. Assim, a supremacia da liberdade individual e a garantia do livre mercado devem estar acima de qualquer recomendação sanitária, sobretudo quando elas impliquem em restrições. A submissão do campo científico se dá também nas reiteradas críticas ao ambiente acadêmico, nas tentativas de ferir a autonomia universitária e nas ações orçamentárias de enfraquecimento do setor de pesquisas.
A conveniência da submissão aos órgãos de controle e saúde também se dá a partir do compromisso neoliberal. Remédios que sejam garantidores da não preocupação com os riscos da COVID-19 são valorizados ainda que sem aprovação da Anvisa para os casos em questão. A mesma Agência é usada como parâmetro de cautela na aquisição de vacinas.
O Populismo Bolsonarista rivaliza contra uma série de inimigos políticos que ganham importância ao sabor dos acontecimentos. Enquanto a imprensa é uma antagonista desde o período eleitoral, governadores e prefeitos passam a ocupar um espaço de centralidade no discurso por serem os responsáveis por medidas criticadas pelo Governo Federal na figura de seu líder. O funcionamento das lives, por si só, é uma das estratégias comunicativas para criar um paralelismo em relação à imprensa.
Ao analisar as lives, foi possível identificar o comportamento populista na construção de uma narrativa em canal direto com o eleitorado, a valorização do Povo como sustentação do movimento e a antagonização com os adversários vistos como inimigos políticos. O Populismo Bolsonarista é a expressão específica que emerge do grupo associado ao seu líder. Enquanto governante, o ex-capitão mantém sua comunicabilidade digital e reforça as marcas que o ajudaram a forjar a imagem que lhe deu sucesso eleitoral. Assim, o movimento bolsonarista deixa de ser um segmento político de fãs e apoiadores e passa a ser uma estrutura de governabilidade.
Referências
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1 Lista das lives analisadas: 04/03 – duração de 59min08s; 11/03 – duração de 1h12min30s; 18/03 – duração de 56min52s; 25/03 – duração de 19min192; 01/04 – duração de 57min39s; 08/04 – duração de 25min11s; 15/04 – duração de 40min13s; 22/04 – duração de 42min13s; e 29/04 – duração de 1h06min53s.
2 A defesa do isolamento vertical preconiza que apenas grupos de risco sejam isolados sem prejuízo às atividades gerais da sociedade, como comércio, indústria e serviços.