Território Barra da Tijuca: do sertão carioca aos condomínios fechados
Barra da Tijuca territory:from the Sertão Carioca to the gated communities
Territorio de Barra da Tijuca:del SertãoCarioca a los condominios cerrados
e-ISSN: 1605 -4806
VOL 26 N° 115 septiembre - diciembre 2022 Varia pp. 175-187
Recibido12-07-2022 Aprobado 14-12-2022
Valeria De Mendonca
Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
valpsico56@gmail.com
Resumo
Parte da pesquisa Território e territorialidade: do “sertão carioca” aos condomínios fechados da Barra da Tijuca, este artigo tem como cenário dois condomínios da Zona Oeste do Rio de Janeiro – Barra Sul e Pontões da Barra –, situados lado a lado no bairro da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Inicialmente, foram resgatadas as primeiras formações populacionais no território pesquisado, com intuito de aprofundarem-se as significações sociais construídas, bem como de verificarem-se as características sociais e culturais emergentes, incluindo as dinâmicas organizacionais dos sujeitos que ali habitam. Daí a ênfase no conceito de espaço como intercessório e passível de ser atravessado por outras significações, que acabam por lhe conferir diferentes ângulos e significados. A metodologia liga-se à vertente de pesquisa qualitativa e participativa, voltada às questões temáticas sobre o cotidiano social em seus desdobramentos culturais e identitários. Para isso, fez-se um mapeamento das potencialidades dos locais estudados e dos usuários que ali moram ou transitam, por meio da análise de entrevistas, como forma de incorporar a dimensão subjetiva ao território espacial, numa aproximação dos territórios vividos e construídos. Por ser um bairro planejado para preservar áreas públicas e manter um distanciamento padrão entre as construções, a Barra da Tijuca volta para a promoção de um estilo de vida que visa a um bem-estar e a uma qualidade de vida na integração Homem/Natureza. Sua geografia, com uma grande planície cercada por mar, lagoas e montanhas, favoreceu a construção de condomínios, de shoppings e de grandes vias de circulação de veículos; contudo, a maior particularidade dessa área é seu caráter de diversificação, unindo várias classes sociais que por ali moram/circulam/estudam/trabalham. Por ter sua história documentada, incluindo as povoações e a composição geográfica do início do século XVII, a área permite uma pesquisa direcionada à composição social e territorial.
Palavras chave: território, espaço, significantes sociais, dinâmicas organizacionais
Abstract
Part of the research Territory and territoriality: from the SERTÃO CARIOCA to the gated communities of Barra da Tijuca, this article is based on two condominiums in Rio de Janeiro’s West Zone - Barra Sul e Pontões da Barra - located side by side in the Barra da Tijuca neighborhood, Rio de Janeiro. Initially, the first population formations in the researched territory were rescued, in order to deepen the social meanings that are constructed, as well as to verify the emerging social and cultural characteristics, including the organizational dynamics of the individuals who live there. This leads to the emphasis on the concept of space as intercessory and liable to be cross-passed by other definitions, which end up giving it different angles and meanings. The methodology is linked to the qualitative and participative research strand, oriented to thematic issues on social daily life in its cultural and identity unfoldings. To do this it was made a mapping of the potentialities of the studied places and of the users who live or pass through them, by means of the analysis of interviews, as a way to incorporate the subjective dimension to the spatial territory, in an approximation of the lived and built territories. Because it is a neighborhood planned to preserve public areas and maintain a uniform distance between constructions, Barra da Tijuca is looking to promote a lifestyle that promotes well-being and quality of life in the integration between Man and Nature. Its geography, with a large plain surrounded by sea, lagoons, and mountains, favored the construction of condominiums, shopping malls, and large traffic routes for the circulation of vehicles; however, the greatest particularity of this area is its diversification, uniting various social classes that live/circulate/study/work there. By having its history documented, including the peopling and geographical composition of the early 17th century, the area allows for research directed at the social and territorial composition.
Keywords: territory, space, social signifiers, organizational dynamics
Resumen
Parte de la pesquisa Territorio y territorialidad: del SERTÃO CARIOCA a los condominios cerrados de Barra da Tijuca, este artículo se sitúa en dos condominios de la Zona Oeste de Río de Janeiro - Barra Sul e Pontões da Barra - situados uno al lado del otro en el barrio de Barra da Tijuca, Río de Janeiro. Inicialmente, se han rescatado las primeras formaciones de población en el territorio investigado, con la intención de profundizar en los contenidos sociales construidos, así como verificar las características sociales y culturales emergentes, incluida la dinámica organizativa de los individuos que viven allí. De ahí el énfasis en el concepto de espacio como intercesor y susceptible de ser atravesado por otros entendimientos, que acaban dándole diferentes ángulos y significados. La metodología está vinculada a la vertiente de investigación cualitativa y participativa, centrada en cuestiones temáticas sobre la vida cotidiana social en sus desdoblamientos culturales e identitarios. Para ello, se realizó un mapeo de las potencialidades de los lugares estudiados y de los usuarios que los habitan o transitan a través del análisis de las entrevistas, como forma de incorporar la dimensión subjetiva al territorio espacial, en una aproximación a los territorios vividos y construidos. Por ser un barrio planeado para preservar los espacios públicos y mantener una distancia uniforme entre las construcciones, Barra da Tijuca se vuelve a promover un estilo de vida que busca el bienestar y la calidad de vida en la integración Hombre/Naturaleza. Su geografía, con una gran llanura circundada de mar, lagunas y montañas, ha favorecido la construcción de condominios, centros comerciales y grandes avenidas para la circulación de vehículos; sin embargo, la mayor particularidad de esta zona es su diversificación, uniendo a varias clases sociales que viven/circulan/estudian/trabajan allí. Al tener su historia documentada, incluyendo el asentamiento y la composición geográfica de principios del siglo XVII, la área permite la investigación dirigida a la composición social y territorial.
Palabras clave: territorio, espacio, significantes sociales, dinámica organizativa
Introdução
Ao adentrar o campo dos territórios, pretendi abordar, neste artigo, a transformação da área da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, desde o início do século XVII até sua configuração espaciossocial da atualidade, com intuito de aprofundar os significantes sociais construídos. O tema será aqui apresentado em sua vertente histórica, num recorte de minha tese (em curso), que também abrange estudos da contemporaneidade, com seus modos de vida, hábitos e relações sociais.
A respeito da importância histórica, Sposito (1988) coloca que entender a cidade na dinâmica de um espaço – em constante estruturação – implica “considerar todas as determinantes econômicas, sociais, políticas e culturais que, no correr do tempo, constroem, transformam e reconstroem a cidade”. O processo responde e ao mesmo tempo dá “sustentação às transformações engendradas pelo fluir das relações sociais” (p. 9).
Os condomínios Barra Sul e Pontões da Barra, justo na divisa entre a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, foram escolhidos como cenário, sendo que ambos os bairros, em sua configuração original, faziam parte da mesma baixada de Jacarepaguá, mas hoje se transformaram em territórios independentes, embora contíguos. Agregando em um só lugar muitas das ofertas espalhadas nos bairros tradicionais (escolas, comércio, igrejas, feiras, clubes), percebo o quanto um condomínio é composto por dinâmicas organizacionais e por vivências em comunidade. Andrade (2003) estabelece uma ligação entre cotidiano e espaço que vem explicar a relação da cultura com o espaço físico edificado: “As cidades foram criadas e se desenvolveram para atender às necessidades humanas, de forma que o homem pudesse viver junto, numa organização comunitária” (p. 99).
Como mais de um sujeito constrói a identidade de determinado território, a cada um cabe imprimir a representação com que mais se identifica, levando-se em conta que uma representação nunca é fixa ou impermeável a novos olhares, posto que é substantivada por elementos influenciados pelo tempo e pelo espaço.
Para Giddens (1991), a modernidade produziu novos modos de vida, fazendo com que “todos os tipos tradicionais de ordem social” fossem radicalmente quebrados: “Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes” (p. 10).
Maffesoli (2005) revela as múltiplas identificações presentes neste período do século XXI, numa troca de papéis (e não de funções) nas esferas da vida (familiar, profissional, religiosa). Para ele, as sociedades vivem da circulação, da troca, da abertura à alteridade e também da minoração do caráter individual em reforço do coletivo. A pós-modernidade, para o autor, opera no rompimento da lógica do dever-ser e da conjunção do arcaico (ordem do emocional) com as tecnologias de ponta (ordem do racional), com afetividade e tecnologia em comunhão, e valores contrários em convivência.
A representação espaciotemporal dos territórios em destaque interfere no andamento da organização administrativa, detentora de normas/estatutos/convenções, produzindo organizações próprias – observação que me levou à questão inicial: Até que ponto dois condomínios vizinhos se deixam ou não contaminar pelas propostas do outro, a ponto de formarem uma única identidade ou, ao contrário, se distanciarem e seguirem organizações distintas?
Para respondê-la, busquei os registros históricos da ocupação dessa grande área. Inicialmente designado por “sertão carioca” (Corrêa, 1936), o local manteve-se, até metade do século XX, quase virgem, com poucas interferências humanas. O quadro, contudo, foi sendo alterado com a abertura de acessos novos (pontes, túneis e viadutos) e a execução do Plano Piloto do arquiteto Lucio Costa, no governo de Negrão de Lima (1965-1971) – interferência pública que, de certa forma, explica a configuração urbana que a região atingiu ainda hoje, onde impera o sistema de condomínios, shoppings e grandes vias rodoviárias. Tal processo carreou consigo novos modos de vida, hábitos e relações sociais.
Habitar esses espaços (moradores) ou situar-se neles (população de passagem ou em trabalho/estudo) implica, naturalmente, uma dinâmica organizacional que comporta formações subjetivas e características socioculturais distintas, ou seja, considerando-se a multiplicidade de pessoas em convivência e em circulação, é possível afirmar que esses espaços funcionam como “microbairros”, tanto sob o ponto de vista estrutural (comércio, escola, igreja, clube, restaurante) quanto sob o da complexidade de gestão dos altos recursos arrecadados e que ali são girados/gerados.
A multiplicidade de interações sociais que ali se estabelece tem por resultado uma pluralidade cultural (crenças, costumes, valores) inerente a qualquer ser humano. Seu cotidiano expressa um modus vivendi característico, uma tentativa de acomodação para permitir a vida em coletivo. A esse respeito, Oliveira e Sgarbi (2008) ressaltam a diferença entre o cotidiano do senso comum (rotina) e o cotidiano social. Para os autores, o cotidiano diz respeito a uma dimensão espaciotemporal, permitindo interpretá-lo como um espaço (lócus) onde emerge uma produção (sempre ideológica) derivada da vida social e que pode sofrer os efeitos da transformação pelo tempo. São os “saberespoderes tecidos cotidianamente pelos diferentes sujeitos sociais”, que se efetivam como “saberespoderes para os fazeres emancipatórios” (p. 69).
Os condomínios nomeados como fechados (Freitas, 2005) resistem a abrirem por completo suas fronteiras físicas. Com apenas uma ou duas vias de entrada e saída, a maioria deles possui cercas de separação do espaço público e guaritas com segurança particular, numa forma de isentar o Estado de certas responsabilidades e num claro processo de terceirização. A esse respeito, a “defesa do lugar”, assunto comunitário, é de responsabilidade do bairro, o que gera debates nas reuniões de condomínio, conforme Bauman (2003):
Onde o Estado fracassou, poderá a comunidade – a comunidade local, uma comunidade corporificada num território habitado por seus membros e ninguém mais (ninguém que ‘não faça parte’) – fornecer aquele ‘estar seguro’ que o mundo mais extenso claramente conspira para destruir?(p. 102)
A pergunta de Bauman ganha ainda maior dimensão na realidade de violência em que se encontra o Rio de Janeiro, cuja população sente-se prisioneira de seus lares. O fenômeno é mencionado porque os imóveis comercializados dentro de condomínios fechados são, em geral, mais valorizados do ponto de vista financeiro, por causa dos aparatos de vigilância. Essa “sensação de perigo” vai, conforme Giddens (1991), “fazer mais do que simplesmente enfraquecer ou nos forçar a provar a suposição de que a emergência da modernidade levaria à formação de uma ordem social mais feliz e mais segura” (p. 15).
É natural que cada condomínio construa sua identidade de acordo com sua forma de representação, mas isso não garante que essa composição permaneça fixa e imutável, pois, se a identidade é espelho do sistema cultural que a rodeia, ela está sempre em movimento, sujeita às rápidas mudanças operadas pelo tempo.
Ao verificar as características sociais e culturais e as dinâmicas organizacionais na relação indivíduo-cultura-ambiente educacional (escolas públicas municipais e paróquia, no caso), os significantes sociais sobressaem, acentuando-se que a cultura vivenciada e o ambiente onde ela se concretiza são interligados; ao mesmo tempo em que os caracteres culturais vêm moldados pelos indivíduos no lugar onde operam (sistemas organizacionais), eles imprimem nesses mesmos indivíduos marcas que os orientam a certas autovinculações, conforme se identificam ou não com seus traços – processo que evolui para novas características identitárias, expressas tanto por semelhanças quanto por diferenças.
Quanto aos condomínios objetos de análise, ao observar o cotidiano da sua estrutura organizacional, percebo haver diferentes “nichos” (segurança, clube, comércio, escolas, igrejas) entremeados às mais variadas “tribos” (jovens, idosos, trabalhadores, estudantes, religiosos), que, juntos, exigem uma autoadministração complexa.
Maffesoli (2005) aponta que a importância conferida ao coletivo dentro de um espaço veio acompanhada do fenômeno da socialidade, no sentido do compartilhamento de referências, da experimentação de diferentes saberes do cotidiano, com a valorização, inclusive, de culturas de grupos, no desvelar de uma sociedade tribalista onde grupos funcionam como unidade e em redes deliberadas. Cada um defende o direito de ter seus valores, sem que os demais tenham de segui-los. Daí também as alianças que solificam certas estruturas sociais ou que lhe garantem uma pluralidade sempre por fazer-se.
Percebo, como moradora e frequentadora das partes comuns, que as identidades culturais variam de acordo com o território a que estão subjugadas. Por isso, chama atenção o fato de que, embora o Barra Sul e os Pontões da Barra estejam separados por uma única alameda e que haja um trânsito intermitente de pessoas entre ambos, seus significantes socioculturais não são idênticos nem, tampouco, o seu público morador. Tais relações precisam ser teoricamente construídas e validadas pela análise para serem oficialmente confirmadas. Neste ponto, a existência de um modo relacional determinaria certas práticas como “propriedades que lhes cabem em um momento dado, a partir de sua posição em um espaço social determinado e em uma dada situação de oferta de bens e práticas possíveis” (Bourdieu, 1996, p. 18). Um bom exemplo é a manutenção/conservação das áreas coletivas, bem mais cuidadas em um do que no outro, revelando pertencimentos de diferentes ordens. No caso, pode-se detectar um conjunto de posições sociais que fica exposto quando comparado a outro conjunto com que mantém relação e cujo sentido só se estabelece nessa via dupla.
Elementos e métodos
A justificativa da pesquisa deu-se por considerar que o fenômeno comporta crenças e valores advindos dos sujeitos e dos componentes que o sustentam, como forma de manifestar a imagem ideológica do seu sistema, no ato de promoverem-se relações; por isso, a necessidade de delinear-se o espaço como intercessório e, ao mesmo tempo, passível de ser atravessado por outras significações.
As sustentações teóricas são múltiplas. A psicologia social é o ponto de encontro de teóricos que permeiam os espaços geográficos, os territórios e a territorialidade, em união aos conceitos contemporâneos de cultura. Afirmo isso porque, do lugar de pesquisadora do campo da Psicologia Social, não é possível adotar apenas as teorias concernentes a essa área, considerando que os temas fazem fronteiras com as áreas de geografia, sociologia, história, ciências sociais, entre outras.
Contudo, esse fato não implica a perda da identidade e dos caracteres da Psicologia Social, cujos principais pressupostos, desde o início, fazem parte do meu percurso, conferindo-me um lugar de pertencimento que denominei “estudando o mundo do território”. Diante desse desafio, optei por buscar uma metodologia que pudesse refletir essas contradições e produzir uma síntese. Levei em conta que as experiências sociais são tomadas ora pela participação em um grupo de convivência, ora pelas reações interpessoais ou intergrupais.
Quanto aos condomínios fechados, o leque a ser explorado é vasto, inclusive para a Psicologia Social, ao adentrar um cenário rico em diversidades, uma vez que as dinâmicas das relações são processadas em comunhão com ações gerais ou específicas. Como colocado por Santos (2013), há uma relação entre a dinâmica territorial e a manifestação da consciência social, oriunda de uma estrutura central – administração, conselhos dos moradores, segurança – e de entorno, como: comércios, escolas, sistemas de mobilidade, por exemplo.
Embora o modelo “condomínios da Barra da Tijuca” se tenha estabelecido no século XX, ele ainda permanece pulsante por representar uma espécie de “área de fusão”, já que relacionado à dinâmica da cidade com suas consequências positivas e negativas, além de conservar um estilo de vida reservado àqueles que desejam estabelecer-se dentro de um espírito comunitário mais estreito e partilhado.
Visando a alcançar tais propósitos, foi adotada a vertente de pesquisa qualitativa e participativa, voltada às questões temáticas sobre o cotidiano social em seus desdobramentos culturais, identitários. Com isso, optei pelo viés da pesquisa-ação, numa forma de promover a associação de diversas formas de ação coletiva. A fim de completar o trabalho, proponho o uso da cartografia como ferramenta de pesquisa participativa colaborativa, por ser apropriada à reflexão, à organização e à ação em torno de um espaço físico e social específico. A composição de uma cartografia facilita o mapeamento das potencialidades dos locais estudados e dos usuários que transitam e, além de remeter a um território espacial, incorpora a dimensão subjetiva e serve como instrumento de aproximação dos territórios vividos e construídos. Segundo Souza e Francisco (2016), a cartografia propõe “outros modos de tecer compreensões acerca dos homens e do mundo, mapeando paisagens, mergulhando na geografia dos afetos, dos movimentos e das intensidades” (p. 811).
Estão previstas entrevistas junto à população local, no propósito de firmar um diálogo entre teoria/prática (dados recolhidos em campo) e como forma de construir novas narrativas. Tal dinâmica promove a aproximação do pesquisador com o seu objeto de estudo, possibilitando a elaboração de um recorte teórico, quer para confirmar um conhecimento já reconhecido, quer para apresentar novos dados.
Esse mapeamento trata da representação do espaço em foco, dentro da perspectiva social, com vistas a poder conferir indicadores relacionais, naturais e outros. Nessa perspectiva, o importante é obter uma linha de conduta baseada na noção do “aqui e agora”, tão necessária à pesquisa a que me proponho.
Para tanto, alguns procedimentos metodológicos serão realizados: diário de Campo, para auxílio na composição da espacialidade e da temporalidade vividas pela pesquisadora; entrevistas semiestruturadas, de forma on-line e presencial, combinando perguntas fechadas e abertas; iconografia, com fotos da internet e de acervo pessoal.
Resultados iniciais
Muito embora a pergunta principal da pesquisa não possa ainda ser devidamente respondida – a tese encontra-se em curso –, no momento alguns avanços podem exemplificar o processo de ocupação/transformação do espaço da baixada de Jacarepaguá.
Um recorte da teoria de Lefebvre (2006) esclarece acerca do processo contínuo pelo qual a sociedade transforma a natureza por meio do trabalho e do quanto o espaço acaba diretamente afetado pelas estratégias de construção, reconstrução, habitação, abandono, a depender das inter-relações e de novos ou dos mesmos parâmetros.
Para Lefebvre (2006), o espaço social é formado por relações sociais, como as de reprodução biológica, força do trabalho, exploração-dominação, produção do espaço. É através delas que o homem interage com a natureza ou a modifica.
Em se tratando do espaço pesquisado, Barra da Tijuca, interessa retratar as transformações nas relações sociais que a produção do espaço sofre. De acordo com Lefebvre (2006), a produção do espaço se desdobra em três elementos: 1) a prática espacial (social) – espaço percebido pelos indivíduos – “Ela (a sociedade) o produz (o espaço) lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. Para a análise, a prática espacial de uma sociedade se descobre decifrando seu espaço” (p. 65); 2) as representações do espaço – espaço concebido por cientistas, engenheiros, planejadores etc. – “É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam (com algumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um sistema de signos verbais, portanto, elaborados intelectualmente” (p. 66); e 3) os espaços de representação – espaço diretamente vivido pelos indivíduos – “É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção)” (p. 66).
Tais explicações possibilitam o entendimento de que os espaços partem de uma delimitação geográfica, mas os movimentos de produção da sociedade compõem um quadro onde “formas, funções e sentidos se entrelaçam no ato do viver” (Lefebvre, 2006, p. 139).
Concebidas dentro de determinado e limitado espaço, as cidades refletem a sociedade e sua própria estruturação social. Para Oliven (2007), “as cidades constituem os centros mais dinâmicos de sociedades complexas; e representam também espaços nos quais as contradições desse tipo de sociedade se tornam mais evidentes” (p. 17). Como representantes de espaços contraditórios, as cidades, em suas dinâmicas, constituem-se o “contexto no qual se desenvolvem vários processos e fenômenos sociais” (p. 17).
Sobre as maiores contradições urbanas do Rio de Janeiro, historicamente pode-se dizer que nascem no início do século XX, quando o prefeito Pereira Passos, com o fim de transformar a capital do Brasil em grande metrópole mundial, promoveu a estruturação espacial da cidade, com o alargamento e a abertura de grandes avenidas, tendo, para isso, promovido inúmeros atos de segregação social, com o remanejamento de moradores para a periferia. Foi a época da expansão da cidade para a periferia. Segundo o historiador Souza (2008):
O Rio de Janeiro da Belle Époque, a então capital da recém-fundada república brasileira, foi uma das cidades latino-americanas onde a elite dirigente melhor incorporou a urbanização como uma necessidade urgente de uma sociedade que precisava ‘civilizar-se’. As reformas, que em poucos anos redefiniram funções para as áreas centrais da cidade, criaram condições para um novo ordenamento espacial com o surgimento de novas zonas de elite na parte sul da cidade (pp. 69-70).
Ruas foram destruídas e no lugar surgiram grandes avenidas (Presidente Vargas, Rio Branco, Beira-Mar), com vasta desapropriação de imóveis. Bairros como Botafogo, Gávea, Jardim Botânico, Laranjeiras ganharam grandes casarões, em meio à exuberância da natureza, “enquanto boa parcela da população precisou recompor sua vida nos subúrbios e morros, espaços onde efervescia a cultura popular” (Souza, 2008, p. 70).
A cidade expandiu-se pela orla costeira e em direção aos subúrbios, segundo Fonseca (2019): “O Rio de Janeiro se espraiou pela costa e penetrou o interior levando sua herança cosmopolita. Pelo menos, durante o século XIX foi a cidade mais bem-sucedida na tarefa de ser um ponto de interseção mundial no hemisfério sul” (p. 168).
Mas não foram todos os bairros que se desenvolveram na época. A região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca tiveram causas tardias de povoamento, como bem demonstrado nas publicações de Corrêa (1936). Mergulhar nas narrativas de seu livro equivale a empreender uma viagem no tempo, primeira metade do século XX, quando as terras de Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Camorim, Grumari, Itanhangá, Joá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena, hoje pertencentes à XXIV Região Administrativa do Município do Rio de Janeiro, compunham uma mesma área, nomeadas pelo autor de “Sertão Carioca”1, em referência à pouca densidade de população em áreas distantes umas das outras e à inexistência de serviços oferecidos pelo poder público.
Desde a fase embrionária do desenvolvimento do Rio de Janeiro, ficam comprovadas as ideias dos geógrafos (Claval, 1999; Souza, 2000) que estabeleceram a estreita ligação entre o território e o poder exercido pelo Estado, a ponto de serem delimitadas as fronteiras de cada poder estabelecido pelos diferentes gestores das terras – fato determinante para a configuração socioeconômica e cultural de toda a região.
Parte dessa grande extensão territorial foi dividida, no período colonial (século XVI), em duas grandes sesmarias. Nunes-Ferreira (2014) declara que Salvador de Sá, sobrinho de governador geral Mem de Sá, foi nomeado para governar a capitania do Rio de Janeiro e doa as sesmarias aos portugueses que combateram os franceses, cabendo a Jerônimo Fernandes e a Julião Rangel de Macedo as sesmarias de toda a Baixada de Jacarepaguá. Os filhos do governador Salvador de Sá, Martim Correia de Sá e Gonçalo Correia de Sá, reivindicam as terras doadas, e as sesmarias lhes são concedidas. A área que coube a Gonçalo foi arrendada a terceiros, transformando-as em povoações. A sesmaria que pertencia a Martim foi preservada como área rural e ficou conhecida como a “planície dos onze engenhos” (Peixoto, 2019). Com as mortes de Martim Correia de Sá (1575-1632) e de Gonçalo Correia de Sá (1575-1634), a viúva e a filha de Gonçalo, Vitória de Sá, venderam a maior parte de suas terras a Salvador Correia de Sá e Benevides, filho de Martim Correia de Sá.
Nunes-Ferreira (2014) também registra a morte de Salvador Correia de Sá e Benevides (1688), tendo seus filhos herdado as terras. Martim Correia de Sá e Benevides ficou com a porção leste da atual Barra da Tijuca (ou Fazenda da Restinga), enquanto a João Correia de Sá e Benevides coube uma grande área em torno do Engenho D’Água.
E é neste ponto, justamente nessa divisão, que começa a desenhar-se a diferença de caminhos tomados pelos novos adquirentes quanto aos bairros.
Enquanto Jacarepaguá permanece em condições rurais, a Barra da Tijuca é sucessivamente vendida até o século XX, quando passa às mãos do cingapuriano naturalizado brasileiro Tjong Hiong Oei, falecido em 2012, que se tornaria conhecido como o “chinês da Barra” (Nunes-Ferreira, 2014, p. 45).
Em reportagem escrita para o portal de O Globo, Alves (2012) registra a morte de Oei e suas ações:
Os planos de Oei para a Barra foram milimetricamente planejados. Para atrair moradores, ele primeiro investiu no Clube Marapendi. Com o lazer e a vida social dos habitantes garantidos, aliou-se a uma construtora para erguer o condomínio Nova Ipanema, seguido pelo Novo Leblon. Como as donas de casa relutavam a ir para a quase deserta Barra, que sequer tinha um supermercado, Oei foi pessoalmente a França negociar a vinda do Carrefour, que acabou sendo instalado num de seus terrenos.
Em resumo, para atrair a atenção das famílias cariocas, Oei cede parte das terras a empreiteiras, para a instalação de grandes empreendimentos, como: Fazenda Clube Marapendi, Jardim Marapendi; condomínios Nova Ipanema, Novo Leblon, Park Palace, Mandala, Vivendas do Bosque; estabelecimentos comerciais Barra Shopping, Casa Shopping, Makro, Carrefour e Shopping Via Parque, além do Parque Terra Encantada (Nunes-Ferreira, 2014).
Dono oficial da Empresa Saneadora Territorial Agrícola (ESTA S/A) Tjong Hiong Oei aproveitou-se da modernização advinda com o planejamento público (Plano Piloto Lúcio Costa), entre os anos 1970 e 1990, para firmar essas parcerias e para estrategicamente doar à Prefeitura do Rio de Janeiro uma parte da área que se encontrava em litígio – Parque Arruda Câmara (Bosque da Barra), Hospital Lourenço Jorge e Parque das Palmeiras, mais conhecido como Cebolão (Nunes-Ferreira, 2014, p. 48).
Percebe-se, mais uma vez, que a parceria público-privado seguiu seu curso, com intensidade, intermediada por obras nas principais vias de acesso à Barra e ao Recreio dos Bandeirantes e, mais recentemente (2016), por construções que pudessem abrigar os atletas que vieram disputar as Olimpíadas e demais profissionais e familiares envolvidos.
O bem-estar do homem resulta de um conjunto de fatores de ordem material e imaterial, no qual estão incluídos os capitais econômico e social, onde a cultura se insere e por onde a construção do território emerge.
O território, para Milton Santos, “não tem apenas um papel passivo, mas constitui um dado ativo, devendo ser considerado com um fator e não exclusivamente como reflexo da sociedade. É no território (...) que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta” (Santos, 2007, p. 18).
Considerações finais
Se a sociedade demanda transformações, em especial, no uso e na gestão de um território, novos tipos de cidadania também acabam aflorando ou, nas palavras de Santos, “uma cidadania que nos ofereça como respeito à cultura e como busca da liberdade (Santos, 2007, p. 18). Trata-se da reafirmação do território em acordo com os aspectos sociais, naturais, políticos, econômicos e culturais, ou seja, a dimensão material e a dimensão das representações ficam claramente contidas em um território voltado para a interação homem/natureza. Essa abordagem valoriza, inclusive, o aspecto desportivo da identidade socioterritorial, construída a partir das relações e tradições elaboradas/herdadas pelos sujeitos e ressignificadas na linha do tempo (Haesbaert, 1999). “Na identidade social também se configura uma identidade territorial, tendo em vista que em um mesmo espaço as relações sociais são as que delimitam o território” (Haesbaert, 1999, p.178).
Finalizando, cito a música do “Leme ao Pontal” como representante da valorização dessa parte da orla carioca, onde se situa a bela praia do Pontal (Recreio dos Bandeirantes). Conhecido como “Síndico da Barra”, o compositor da música e cantor Sebastião Rodrigues Maia, o Tim, quis homenagear a beleza do Rio de Janeiro, cidade por que era apaixonado. Posteriormente, veio a morar na região, nos anos 80, para viver no sossego, até a sua morte, em março de 1998. Em entrevista à pesquisadora, em 17/04/2021, por telefone, Carmelo Maia, o filho do cantor, explicou que a brincadeira em torno do título de síndico do pai teve início no Natal, quando os funcionários do apart-hotel Parque Palace levaram o Livro de Ouro para que o músico o assinasse. Tim Maia viu com quanto a síndica contribuíra e deu um dinheiro a mais, colocando ao lado de própria assinatura: o síndico. A verdadeira síndica, então, acrescentou um dinheiro a mais e, a partir daí, o jogo entre os dois prosseguiu até atingir um patamar de contribuição que favorecesse os empregados. Sempre chegava o momento em que a síndica não mais conseguia mais acompanhá-lo. Assim, a última assinatura era sempre a dele: “Tim Maia, o síndico”.
Conhecendo a história do Parque Palace, o músico e amigo Jorge Ben Jor, na música W/ Brasil, fez um refrão onde diz: “Eu vou chamar o síndico: Tim Maia! Tim Maia! Tim Maia! Tim Maia!”. O apelido igualmente lhe fora atribuído por Ben Jor acreditar que Tim, com seu temperamento forte, conseguia pôr ordem em tudo, inclusive, no ajuste do som. Depois, de fato, ele passou a “autointitular-se síndico de seu prédio”, no condomínio onde morava. No cotidiano, dividia esse espaço com seu estúdio, em uma casa no Recreio dos Bandeirantes.
Na figura desse artista, pode-se dizer, estão conjugados sentimentos de apropriação de um espaço e, portanto, de uma territorialidade que provoca orgulho e a sensação de alegria. Afinal, “sorria, você está na Barra”.
Referências
Alves, M. E. (2012, 12 outubro). Morre empresário conhecido como “Chinês da Barra” [versão eletrônica]. O Globo. https://oglobo.globo.com/rio/morre-empresario-conhecido-como-chines-da-barra-6432296.
Andrade, R.G.N. (2003). Personalidade e cultura: construções do imaginário. Revan – FAPERJ.
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1 Registro que o nome “Sertão Carioca”, cunhado por Côrrea (1936), ainda é referido nos dias de hoje, conforme reportagem de Rubin, M. (2021, 29 de outubro), informando sobre o decreto municipal número 49.695 (publicado em 27/10/2021, no Diário Oficial), que “estabelece a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) do Sertão Carioca, que abrange os trechos mais urbanizados de Vargem Grande, Vargem Pequena, Recreio e Camorim” [versão eletrônica]. O Globo. https://oglobo.globo.com/rio/bairros/decreto-municipal-cria-apa-do-sertao-carioca-que-abrange-areas-de-vargens-recreio-camorim-25257626.